quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O Subsídio da História


Por Kevin Carson
Um número considerável de libertários comenta a respeito da escala de subsídios e proteções em favor das grandes empresas, e sua importância estrutural para a forma existente de capitalismo corporativo e no estreito entrelaçamento de interesses corporativos e estatais na atual economia capitalista de estado. Prestamos menos atenção, contudo, no papel da coerção estatal no passado, nos séculos anteriores, no assentamento das fundações estruturais do sistema atual. A medida na qual as concentrações atuais de riqueza e poder corporativo são o legado de injustiças do passado, eu chamo de subsídio da história.
O primeiro e, provavelmente, o mais importante subsídio da história é o roubo da terra, pelo qual a maioria dos camponeses foi privada de seus justos direitos de propriedade e se transformaram em arrendatários forçados a pagar aluguel com base em títulos artificiais de “propriedade” das elites privilegiadas pelo estado.
Obviamente, todos esses títulos artificiais não fundamentados em apropriação por meio do trabalho individual são completamente ilegítimos.
Como Ludwig von Mises destacou em Socialism, o funcionamento normal do mercado nunca resulta num estado de coisas no qual a maior parte da terra de um país torna-se “propriedade” de diminuta classe de proprietários ausentes (rendatários) e a maioria camponesa paga aluguel pela terra na qual lavra. Onde quer que isso seja encontrado, é resultado de coerção e roubo no passado.
Murray Rothbard, em A Ética da Liberdade, explicou a injustiça da propriedade feudal:
 Mas suponha que, séculos atrás, Batista estava cultivando o solo e, portanto, possuindo legitimamente a terra; e então aquele Albuquerque aparece e se estabelece perto de Batista, reivindicando, através do uso de coerção, o título da terra de Batista, e extraindo pagamento ou "aluguel" de Batista pelo privilégio de continuar a cultivar o solo. Suponha que agora, séculos depois, os descendentes de Batista (ou, para nosso propósito, outros familiares ou chegados) estão cultivando o solo, enquanto os descendentes de Albuquerque, ou aqueles que compraram seus títulos, ainda continuam a exigir tributos dos agricultores modernos. Sobre quem recai o verdadeiro direito de propriedade em tal caso? Deveria estar claro que aqui... temos um caso de agressão contínua contra os verdadeiros donos — os legítimos proprietários — da terra, os agricultores, ou camponeses, pelo dono ilegítimo, o homem cujo título original e contínuo da terra e dos seus frutos veio da coerção e da violência. Do mesmo modo que o Albuquerque original era um agressor contínuo do Batista original, os camponeses modernos estão sendo agredidos pelos possuidores do título da terra derivado de Albuquerque. Neste caso, que poderemos chamar de "feudalismo" ou "monopólio da terra", os proprietários de terras feudais ou monopolistas não possuem título legítimo à propriedade. Os "locatários" atuais, ou camponeses, deveriam ser os donos absolutos de suas propriedades, e, como no caso da escravidão, os títulos da terra deveriam ser transferidos aos camponeses, sem compensações aos proprietários monopolistas.
Portanto, em vez de defender todos os títulos de terra existentes em nome da “inviolabilidade da propriedade” e protestar quando algum governo esquerdista estabelece uma reforma agrária que transfere títulos de terras feudais para os camponeses, Rothbard era a favor de 1) dividir as plantações do Sul e dar a escravos americanos libertados “quarenta acres e um burro,” e 2) transferir os latifúndios de oligarquias fundiárias na América Latina para os camponeses.
No Velho Mundo, especialmente na Grã-Bretanha (onde a Revolução Industrial começou), a expropriação da maioria camponesa por uma oligarquia latifundiária politicamente dominante ocorreu ao longo de vários séculos no final da Idade Média e início do período da modernidade. Começou com o cerco dos campos abertos no final da Idade Média. Sob a dinastia Tudor, feudos da Igreja (especialmente terras monásticas) foram expropriados pelo estado e distribuídos à aristocracia fundiária. Os novos “proprietários” despejaram ou cobraram aluguéis extorsivos dos camponeses.
Expropriação do Campesinato
O Parlamento da Restauração (Restoration Parliament) do século XVII levou a cabo uma série de “reformas” agrárias que aboliram completamente a posse de terra feudal — mas só por cima. Havia duas maneiras pelas quais o parlamento poderia ter abolido o feudalismo e reformado a propriedade. Poderia ter tratado os direitos de posse consuetudinários do campesinato como título genuíno de propriedade no sentido moderno, e em seguida ter abolido seus aluguéis. O que na realidade fez foi tratar os “direitos de propriedade” artificiais da aristocracia fundiária, da teoria jurídica feudal, como direitos reais de propriedade no sentido moderno; às classes fundiárias foram dados títulos oficiais por lei, e os camponeses foram transformados em arrendatários, de modo arbitrário, sem restrições consuetudinárias aos aluguéis que poderiam ser cobrados. O mais importante componente dessa “reforma” foi o Estatuto de Fraudes (Statute of Frauds) de 1677, que revogou direitos de posse de aforamento, tornando-os nulos para as cortes reais.
Finalmente, os Cercamentos Parlamentares (Parliamentary Enclosures) dos séculos XVIII e início do XIX despojou o campesinato de seus direitos aos recursos comuns. As classes proprietárias da Inglaterra viam a independência econômica proporcionada pelos recursos comuns como uma ameaça, primeiro a uma oferta adequada de trabalho assalariado agrícola na própria terra da oligarquia fundiária e, depois, a uma adequada oferta de trabalho em fábrica com disposição para trabalhar durante longas horas com baixa remuneração. A literatura das classes proprietárias da época foi muito explícita quanto a sua motivação: as classes trabalhadoras não trabalhariam duro o bastante ou de forma barata o bastante enquanto tivessem acesso independente aos meios de subsistência. Elas teriam de ser tornadas tão pobres e famintas quanto possível para se dispuser a aceitar trabalho em que termos que lhes fosse oferecido.
Uma versão do mesmo fenômeno ocorreu no Terceiro Mundo. Nas colônias europeias onde já vivia um grande campesinato nativo, por vezes, os estados concediam títulos semi-feudais a elites fundiárias para que cobrassem aluguel dos que já viviam na terra e a cultivavam. Um bom exemplo é o latifúndio, que prevalece na América Latina até os dias de hoje. Outro exemplo é a África Oriental Britânica. Os 20% mais férteis do Quênia foram roubados pelas autoridades coloniais e o campesinato nativo foi expulso, para que a terra pudesse ser usada para lavoura com fins econômicos por colonos brancos (usando o trabalho do campesinato expulso, obviamente, para trabalhar). Quanto àqueles que permaneceram em sua própria terra, foram “estimulados” a entrar no mercado de trabalho assalariado por um rígido imposto comunitário que tinha de ser pago em dinheiro. Multiplique esses exemplos por cem e terá uma vaga ideia da enorme escala de roubo nos últimos 500 anos.
Contrariamente à versão florida de Mises acerca da Revolução Industrial em Ação Humana, os donos de fábricas não foram de modo algum inocentes no tocante a tudo isso. Mises afirmou que os investimentos de capital sobre os quais o sistema de fábricas foi construído vieram, em grande parte, de trabalho duro e de trabalhadores frugais que economizaram seus próprios ganhos como capital de investimento. Na verdade, porém, eles foram parceiros menores das elites fundiárias, com muito de seu capital de investimento vindo da oligarquia fundiária Whig ou dos frutos do exterior do mercantilismo, da escravatura e do colonialismo.
Além disso, os empregadores das fábricas dependiam de rígidas medidas autoritárias do governo para manter os funcionários, reduzindo o seu poder de barganha. Na Inglaterra, a Lei do Assentamento (Laws of Settlement) funcionou como uma espécie de sistema de passaporte interno, impedindo os trabalhadores de viajar para fora da terra de onde nasceu sem permissão do governo. Desse modo, os trabalhadores foram impedidos de “votarem com os pés”, isto é, procurar empregos mais bem remunerados entre outro lugar. Você pode pensar que isso teria funcionado em detrimento dos empregadores em áreas insuficientemente povoadas, como Manchester e outras áreas do norte industrial. Mas não tema: o estado veio em socorro dos empregadores. Como os trabalhadores foram proibidos de migrar por iniciativa própria em busca de melhores salários, os empregadores foram liberados da necessidade de oferecer salários altos o suficiente para atrair agentes livres. Em vez disso, eles foram capazes de “contratar” trabalhadores leiloados pelas autoridades da Lei dos Pobres (Poor Law) da região, em termos estabelecidos por conluio entre as autoridades e os empregadores.
Discriminação Legalizada Contra os Trabalhadores
As Leis das Associações (Combination Laws), as quais proibiram os trabalhadores de se associarem livremente para negociar com os empregadores, foram aplicadas inteiramente pelo direito administrativo, sem quaisquer proteções do direito consuetudinário devido processo legal. E só foram aplicadas contra associações de trabalhadores, e não contra associações de empregadores (tal como a lista negra dos “problemáticos” e a fixação combinada dos salários). A Lei do Tumulto (Riot Act) de 1714 e outras legislações de policias estaduais durante as Guerras Napoleônicas foram usadas para conter a ameaça de revolução interna, essencialmente tornando a classe trabalhadora inglesa em população inimiga ocupada. Tal legislação criminalizou a maioria das formas de associação.
Até associações fraternais de ajuda mútua, benefícios para funerais, assistência médica e outros, funcionavam em face da hostilidade do estado, de acordo com historiadores do movimento da sociedade amicais, tais como Bob James e Peter Gray. Sob os termos da Lei da Associação, sociedades amicais foram submetidas à estrita supervisão judicial para evitar que a produção manual direta fosse organizada para permutar entre os desempregados, ou que os benefícios da sociedade fossem desvirtuados e funcionassem, de fato, como um seguro-desemprego para trabalhadores em greve. A Lei das Sociedades Correspondentes (Corresponding Societies Act), aprovada mais ou menos na mesma época, proibia todas as sociedades que ministrassem juramentos secretos ou que fossem unidas a nível nacional (confederadas)
Portanto a Revolução Industrial foi, de fato, construída em cima de um sistema de pilhagem legal na qual os empregadores estavam diretamente envolvidos. A forma tomada pelo sistema fabril seguramente reflete essa história. Numa Grã-Bretanha composta de pequenos produtores camponeses, sem quaisquer restrições à livre associação, os trabalhadores teriam sido livres para empregar suas próprias propriedades como capital por meio de instituições de crédito mútuo. A administração ausente e a hierarquia provavelmente teriam sido muito, muito menos prevalente e o sistema fabril, onde existisse, seria muito menos opressivo e autoritário.
Um processo similar ocorreu na colonização das sociedades de colonizadores como os Estados Unidos e a Austrália, por meio do qual as potências coloniais e suas elites fundiárias tentaram reproduzir padrões feudais de propriedade. Em tais colônias, o estado antecipou-se na posse da terra e restringindo o acesso dos trabalhadores. Por vezes deu título de terra desocupada a especuladores de terras privilegiados, que eram capazes de cobrar aluguel daqueles que dela se haviam apropriado (os proprietários legítimos).
E. G. Wakefield, um teórico britânico sobre o colonialismo, do início século XIX defendia tal preferência com argumentos semelhantes àqueles com os quais as classes proprietárias e empregadoras da Grã-Bretanha haviam apoiado o Cerceamento: era mais fácil empregar mão-de-obra qualificada em condições favoráveis ao empregador. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, ele escreveu:
 Nas colônias, os trabalhadores disponíveis são escassos. A escassez de trabalhadores para contratar é a reclamação universal das colônias. Ela é a única causa, tanto dos altos salários que tornam o trabalhador colonial despreocupado, quanto dos salários exorbitantes que por vezes prejudicam o capitalista. . . Onde a terra é barata e todos os homens são livres, onde todos os que assim desejam podem obter um pedaço de terra para si próprio, não apenas o trabalho se torna muito estimado, no tocante à partilha do produto do trabalhador, mas há a dificuldade em obter mão-de-obra a qualquer preço que seja.
Consequentemente, “poucos, mesmo dentre aqueles cujas vidas são raramente longas, podem acumular grandes quantidades de riqueza.”
O discípulo de Wakefield, Thomas Merivale, escreveu sobre o “urgente desejo por trabalhadores mais baratos e subservientes — para uma classe à qual o capitalista pudesse ditar as condições, em vez de estas serem ditadas a ele.”
A preempção da terra foi elemento importante da política colonial no início da história americana. Gary Nash, em Class and Society in Early America relatou concessões de terra na época colonial dos Estados Unidos comparáveis às de Guilherme I na Inglaterra após a Conquista. Em Nova Iorque, por exemplo, as maiores propriedades concedidas pela administração colonial britânica (depois que os Novos Países Baixos foram adquiridos nas Guerras Anglo-Holandesas) variavam de centenas de milhares a mais de um milhão de acres. Governadores continuaram a conceder extensões de terra na casa de centenas de milhares de acres a seus protegidos, até já bem dentro do século dezoito. Sob o governador Fletcher, cerca de três quartos de terras disponíveis foram concedidas a 30 pessoas.
Albert Jay Nock, em Our Enemy, The State (Nosso Inimigo, o Estado), argumentou que “desde a época do primeiro assentamento colonial até os dias atuais, os Estados Unidos tem sido considerado como um campo praticamente sem limites para especulação nos valores de aluguéis.” Muitas figuras de destaque no período final da colônia e inicial da República foram investidores proeminentes nas empresas de muitas propriedades, inclusive George Washington nas Companhias de Ohio, Mississippi, e Potomac; Patrick Henry na Companhia Yazoo; Benjamin Franklin na Companhia Vandalia, e assim por diante.
Em A Ética da Liberdade, Rothbard condenou tal preempção (“açambarcamento da terra, onde reivindicações arbitrárias de terra ainda não lavrada são usadas para manter os primeiros trabalhadores fora daquela terra”) nas mesmas bases de sua crítica aos senhores feudais. Ele recomendou a revogação de todos os títulos atuais relativos à terra não cultivada e a abertura dela para a livre apropriação. Além disso, em casos em que os atuais titulares de hipoteca e donos de terras rastreiam seu título a concessões de terra pelo estado, a reivindicação apropriada encontra-se com aqueles que primeiro se apropriaram da terra, ou de seus herdeiros e cessionários
Homestead Act (tradução livre, A lei da Propriedade) de 1862, uma aparente exceção a essa tendência geral, foi, na verdade, apenas outro exemplo. A maior parte da terra, em vez de ser reclamada nos termos da Lei da Propriedade, foi leiloada para o maior licitante. Mesmo para terras amparadas por essa lei, de acordo com Howard Zinn, a taxa de 200 dólares estava além do alcance de muita gente. Em decorrência, grande parte da terra não foi em absoluto ocupada com base em princípios lockeanos, e sim, inicialmente, foi para os especuladores antes de ser dividida e revendida aos nela estabelecidos. E em comparação com os 50 milhões de acres abrangidos pela lei da propriedade, 100 milhões de acres foram dados como concessões de terra para ferrovias durante a Guerra Civil — livre de custos! Em outras palavras, as classes privilegiadas ficaram com o filé, e os proprietários normais ficaram com o osso.
Mantendo o Sistema em funcionamento
O que descrevi aqui são apenas os atos iniciais de coerção e roubo sobre o qual nossa forma atual de capitalismo industrial foi fundada. Obviamente as coisas não pararam por aí. Uma vez que o sistema estava em funcionamento, ele dependia dos esforços permanentes do estado para manutenção de uma estrutura legal de privilégio, baseada em direitos artificiais de propriedade e escassez artificial: cumprir os direitos absenteístas de terra vaga e não cultivada; barreiras de entrada no setor bancário, tornando o crédito artificialmente caro e escasso; os direitos de propriedade artificiais de patente e direitos autorais; e por aí vai. E a partir do final do século XIX a forma moderna de capitalismo corporativista dependia de intervenção ainda mais maciça do estado: subsídios para transporte de longa distância para tornar as áreas de mercado e o tamanho das empresas artificialmente amplas; os efeitos cartelizadores de patentes e tarifas; cartelização reguladora e indústrias e setores inteiros da economia tanto trazidos à existência ou com mercado garantido financiado pelo pagador de impostos pela perpétua economia de guerra pós-1941.
Ao contrário da mitologia popular, o New Deal não foi uma renúncia a um algum estado idílico preexistente de “laissez faire”. Nunca houve qualquer coisa remotamente parecida com laissez faire. O capitalismo — isto é, o sistema histórico existente tal como realmente se desenvolveu — tem tido muito pouco a ver com mercados livres e muito a ver com roubo e coerção.
Isso não quer dizer que todas as vias para o progresso econômico por meio do empreendedorismo independente foram fechadas. Trata-se de uma luta muito mais árdua do que seria num livre mercado e a área de atuação é injustamente posta em favor dos grandes jogadores.
Na busca por instituir um genuíno livre mercado, os libertários não deviam perder de vista esses fatos. Que lições deveriam os libertários aprender com o relato histórico acima?
Primeiro, nada há de “libertário” sobre a tendência instintiva em correr à defesa dos títulos de propriedade existentes sem levar em consideração a justiça. Como Karl Hess disse no Libertarian Forum, em 1969,
 [O] libertarianismo deseja promover os princípios de propriedade mas . . . de modo algum deseja defender . . . toda propriedade que hoje é chamada de privada. Grande parte dessa propriedade é furtada. Muito dela é de direito questionável. Toda ela está profundamente entrelaçada com um sistema de estado imoral e coercitivo que tolerou, construiu e lucrou com a escravatura; que expandiu e explorou uma política externa imperial e colonial brutal e agressiva, e continua a manter as pessoas numa dura relação servo- senhor até concentrações de poder político-econômico.
Em segundo lugar, na defesa de reformas de livre mercado, temos de considerar o papel dessa herança histórica de injustiça (o subsídio da história) na determinação dos vencedores do sistema atual. Uma “reforma de livre mercado” que simplesmente foque nos beneficiários do assalto, ratificando os privilégios do passado obtidos pelo furto e do qual se beneficiam, irá meramente recompensar a injustiça e proteger seus ganhos ilícitos.
De um ponto de vista ético libertário, o modelo padrão de “privatização” (venda de propriedade do estado para uma grande empresa privada conectada politicamente, em condições das mais vantajosas para a empresa) é, portanto, altamente duvidosa. Isso é especialmente verdadeiro ao se considerar que muito da propriedade foi criada, em primeiro lugar — à custa do pagador de impostos — para o propósito principal de subsidiar os custos operacionais das grandes empresas. Grande parte das empresas de serviço público e infraestrutura de transporte estatal no Terceiro Mundo foram criadas, a mando das elites financeiras transnacionais, como uma precondição para investimento de capital ocidental. E a odiosa dívida adquirida, geralmente por ditaduras corruptas agindo em conluio com a finança global é, então, usada pelo Banco Mundial para chantagear aqueles países a vender sua infraestrutura para as mesmas empresas transnacionais que ele foi criado para beneficiar — geralmente por centavos de dólar.
Um Modelo Adequado de Privatização
O modelo de privatização de Rothbard é muito superior: anula os direitos de propriedade do estado, tratando-a como sem dono, sujeita à apropriação imediata por aqueles que efetivamente nela mesclam seu trabalho. Isso significaria que universidades estatais seriam transformadas em propriedades dos alunos ou do corpo docente, como cooperativas de consumidores ou produtores. Empresas de serviços públicos do governo se tornariam cooperativas de consumidores pertencentes aos pagadores de impostos e fábricas estatais seriam entregues aos trabalhadores e reorganizadas como cooperativas de trabalhadores.
Temos também de ser cautelosos quanto aos argumentos pseudo-coaseanos de que “não importa” de quem a propriedade originalmente tenha sido furtada, porque ela acabará nas mãos do proprietário “mais eficiente”. É essencialmente o mesmo argumento usado para a desapropriação eminente. Independentemente das mãos na qual a propriedade termine, os legítimos proprietários e seus descendentes — que nunca receberam indenização — estão excluídos do valor do que foi furtado deles. E até os modos mais ineficientes de organização da produção são bastante “eficientes”, comparativamente falando, quando se conta com a vantagem competitiva de trabalhar com propriedade roubada.
Ademais, não existe coisa tal como “eficiência” genérica; a eficiência depende da finalidade do proprietário. A técnica mais eficiente para a agricultura de subsistência em um pequeno quintal — economizando em terra mediante melhoramento do solo e adição de insumos intensivos em trabalho — é totalmente diferente do que um oligarca feudal, que produz com objetivo de lucrar com acesso a mais terra roubada do que ele poderia usar possivelmente e, geralmente, mantendo a maior parte de sua terra roubada fora de uso por completo. De qualquer modo, o legítimo proprietário, sem dúvida, acharia muito mais “eficiente” alimentar-se na sua própria terra do que passar fome numa favela por não poder comprar até mesmo o alimento mais barato oriundo dessas plantações “eficientes” ocupando a terra roubada dele.
O atual sistema de economia política que tantos apologistas corporativistas se referem como “nosso sistema de livre mercado” tem-se caracterizado desde o começo pelo roubo. Precisamos ser cautelosos com “reformas de livre mercado” efetuadas pelos ladrões.
Elas equivalem, na prática, a permitir que os assaltantes — mãos ainda cheias de pilhagem — digam: “Tudo bem, sem roubos, a partir.. . de agora!”.
Traduzido por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme. Revisado por Rodrigo Viana / Matheus Pacini.


Kevin Carson é um anarquista individualista e teórico mutualista contemporâneo cujos trabalhos incluem "Studies in Mutualist Political Economy", "OrganizationTheory: A Libertarian Perspective" e "The Homebrew Industrial Revolution: A Low-Overhead Manifesto", todos disponíveis online. Ele é associado sênior do instituto Center for a Stateless Society (c4ss.org).