sexta-feira, 13 de junho de 2014

Sobre o livre mercado anti-capitalista


Por Rodrigo Viana
Dentro dos “corredores” do movimento libertário existe um grupo de pessoas que vem chamando a atenção. Este grupo, composto por pessoas que possuem uma visão de mundo diferente dos demais libertários, com retórica própria e do qual se alinham a teóricos que não fazem parte da ala mainstream do movimento, é conhecido por defenderem o mercado liberto, ou o livre mercado anti-capitalista. Estes são os libertários de esquerda, um grupo heterogêneo composto, na grande maioria, por anarquistas individualistas de vertentes diversas.
Para muitos, ter o termo “livre mercado” junto com “anti-capitalismo” soa um tanto estranho. Para algumas pessoas livre mercado tende a significar algo como liberalismo econômico ou o próprio capitalismo. Para outros, anti-capitalismo tende a significar intervenção e/ ou planificação econômica estatal ou socialismo. Embora tais conclusões não estejam incorretas, elas apresentam falhas por não englobar outras diferentes abordagens sobre a economia política. Por isso é necessário uma melhor explicação.
Definindo o capitalismo
Antes de prosseguir, se faz necessário definir o termo capitalismo. É sabido que durante o tempo muitos teóricos políticos, de diferentes escolas de pensamento, agregaram diversas significâncias ao termo. Às vezes, opondo-se entre si. Porém, ainda assim, podemos definir o capitalismo em três significados:
  • capitalismo-1: sistema econômico que se baseia em alguma ordem que reconheça um direito de posse. Resultando na troca voluntária de bens ou serviços que visam satisfazer as necessidades dos envolvidos.
  • capitalismo-2: sistema econômico onde exista uma laço unindo o poder político e o poder privado. Esse poder privado é bastante influente na área econômica, pois é exercido, geralmente, por uma corporação, uma grande empresa.
  • capitalismo-3: sistema de domínio feito por capitalistas. Por “domínio” quero dizer o controle do ambiente de trabalho, da sociedade e do poder político, caso este se faça presente. E por “capitalistas” quero dizer uma elite econômica, um pequeno número de pessoas que controlam os rumos da riqueza e dos meios de produção.
Feito essas distinções, podemos perceber que o mercado liberto é tanto contrário ao capitalismo-2 quanto o capitalismo-3 mas não ao capitalismo-1.
O capitalismo-2 cria intervenções políticas que privilegia grupos econômicos em relação aos demais. É a chamada política “pró-empresa”, o alimento que garante a existência de tais privilégios: parceria público-privado, regulamentações, subsídio, resgate financeiro, protecionismo e etc. Podemos ver este tipo de política agindo através de instituições como, por exemplo, o Bacen, BNDES, FMI e o Banco Mundial.
O resultado disso é uma população à mercê de uma pequena elite que recebe benesses do estado para poder garantir aquilo que um mercado liberto não o daria: enriquecimento fácil às custas de outros.
Por consequência, o capitalismo-2 gera o capitalismo-3. Com isso, o setor econômico fica amarrado, aparelhado pelo estado e o mercado totalmente deformado. Dentro de um cenário desse tipo as pessoas comuns são levadas a atuarem em ambientes limitados, onde haja um pleno domínio por um tipo de modelo onde comporta estruturas como: produção em larga escala, hierarquização, centralização, subserviência entre patrão-empregado, trabalho assalariado e transação que vise apenas dinheiro. Diante desses aspectos torna-se nítido o quão limitado é para alguém de fora da elite atuar de forma autônoma e livre no campo econômico.
Mas se o capitalismo-1 possui os mesmo princípios dos quais os livre-mercadistas anti-capitalistas apoiam o mercado liberto, por que estes renegam tal termo? Isso é o que veremos ao analisarmos as diferentes concepções de mercado.
Os mercados
Quando libertários mencionam o termo mercado, geralmente possui dois significados dos quais usam em diferentes contextos. São eles:
  • Mercado como troca livre: neste caso o termo é usado para designar trocas de propriedades feitas de modo voluntário, livre. Esse termo é usado para descrever um ambiente de plena liberdade, onde não haja a interferência de forças regulatórias e com competição irrestrita e livre iniciativa plena.
  • Mercado vinculado ao dinheiro: neste caso é usado para descrever um modelo de aquisição e troca de bens ou serviços onde haja um relacionamento social um tanto impessoal através da moeda ou instrumentos financeiros.
Com isso podemos verificar o seguinte. Um mercado vinculado ao dinheiro é um modelo de transação econômica onde cenários econômicos diversos podem adotá-lo em ambientes diversos. É através dos mecanismos contidos neste modelo (moeda circulante, produção, poupança, investimento e etc.) que tanto uma bolsa de valores quanto uma quitanda do subúrbio geralmente funcionam.
No entanto, em um mercado liberto tanto um modelo vinculado ao dinheiro, quanto outros modelos podem coexistir naturalmente. Mais do que isso, em um mercado liberto o modelo vinculado ao dinheiro teria uma transformação radical. Se entendermos que o capitalismo atua, quase que em sua totalidade, através desse modelo, então tem-se a ideia de que sem o capitalismo as transações comerciais sofreriam mudanças significativas, pois novas formas de transação comercial surgiriam. Tendo assim modelos competindo uns com os outros.
Se no capitalismo existe a certeza da existência de exploração, num mercado liberto o capitalismo seria exterminado, havendo novas alternativas além do status quo. Ora, o que seria do cenário econômico sem privilegiados financeiros, monopolizadores do capital e dos meios de produção?
O que se percebe é que em um mercado liberto o modelo vinculado ao dinheiro não deixaria de existir. O trabalho assalariado, o aluguel e o emprego corporativo (características do sistema capitalista) estariam sendo utilizados. Mas dado a liberdade de atuação, a autonomia de cada indivíduo ou grupo que estaria florescendo, diferentes modelos de transação e produção apareceriam.
Surgiria um um boom de diferentes iniciativas como associações de ajuda mútua (por exemplo, mutirões), associações de caridade, economia do dom, sociedades comunais, cooperativas, empresa gerida por sindicatos livres, trabalhadores autônomos e muito mais. Logo, o mercado liberto não significa apenas um modelo de trocas livres, mas um cenário de infinita experimentação social também.
Sob a luz da história, vemos que o capitalismo não nasceu através de estruturas onde a liberdade e o direito possessório eram respeitados. Pelo contrário, o capitalismo nasceu e se manteve por causa da negação destes direitos. É o resultado direto que houve com a dissolução do feudalismo.
As estruturas dos quais ele se originou inclui-se o roubo de propriedades (dos pobres), latifúndio, protecionismo, dissolução de associações de ajuda mútua (para prevalecer trabalhos assalariados), abolição de cooperativas, subsídios à empresas com conexões políticas, acúmulo de riqueza baseado na espoliação e tantos outras formas de manter privilégios. A Revolução Industrial, o prenúncio do capitalismo, se fundamentou nestes pilares do qual ainda se mantém hoje.
Após quase três século de um interminável modelo econômico injusto, as perguntas que vem a mente são: seria o modelo de produção capitalista, baseado em trabalho assalariado, centralização, hierárquico e de larga escala, o que melhor se adaptou durante os tempos? Seria este um modelo superior aos outros?
Essa é a resposta que os anarquistas de mercado anti-capitalistas respondem com um sonoro “não”. O capitalismo não surgiu apesar do estado, mas por causa do estado. Antes dele ter sobressaído perante ao demais, sequer era o modelo de produção mais utilizado.
Os anarquistas de mercado anti-capitalistas possuem a propensão de renegar o modelo atual para apoiar qualquer modelo de liberdade que se mostre contrário ao status quo econômico. Diferente de um libertário comum que tende a visionar apenas um mercado livre das amarras do estado, porém apoiando as estruturas semelhantes ao que existe hoje, o anarquista de mercado anti-capitalista almeja não apenas se ver livre do estado mas das atuais estruturas também. Deste modo, o anarquista de mercado anti-capitalista é o defensor radical da liberdade econômica em todos os níveis.
É interessante também notar que anarquistas de mercado anti-capitalistas vêem o mercado liberto de tendência anti-capitalista. Foi isso o que o anarquista individualista Benjamin Tucker visualizou que sem uma estrutura de monopólio da moeda, da segurança, das terras e sem o corporativismo, a sociedade teria uma tendência em adotar modelos menos hierárquicos, de alcance local e de uma maior liberdade de atuar de modo independente no cenário econômico. Daí a necessidade de apoiar modelos não-capitalistas de produção.
Não, não é uma questão semântica
Embora haja uma variedade de trabalhos elucidando o tema e dando a devida introdução, é comum libertários pró-”capitalismo” entender que tudo não passa de discussão semântica ou uma retórica diferente para atrair a esquerda anti-mercado.
Se analisarmos as raízes dos pensadores pró-mercado anti-capitalistas, veremos que essa caracterização simplista passa longe. De Josiah Warren e Pierre-Joseph Proudhon, partimos pra Benjamin TuckerVoltairine de ClayreLysander Spooner e Victor Yarros. E isso só do século 19. Entre os contemporâneos podemos destacar Samuel Konkin III e Karl Hess, do século passado, e Roderick Long e Kevin Carson, dos tempos atuais.
Todos estes pensadores, dentro de suas linhas de pensamento, sempre se colocaram contra as corporações, apoiando modelos anti-estatistas, favorecendo uma horizontalização, pró-luta trabalhista e favorecimento de alternativas que dessem maior autonomia e liberdade para os trabalhadores menos afortunados, perante uma minoria privilegiada. Mais do que isso, sempre se viram dentro da tradição anti-capitalista (e esquerdista).
Esta visão de sociedade, no geral, contrasta muito com a visão dos libertários comuns. Embora estes defendam a liberdade econômica em seu pleno funcionamento, seu modelo apoiado tende a distanciar dos defensores do mercado liberto. Por adotar não apenas o termo, mas o modelo parecido com o defendido pela direita, geralmente esses libertários caem em conflação com este grupo. Sem uma clara distinção de saber, na prática, quem é quem.
Ora, o norte de um apoiador do mercado liberto passa radicalmente longe dessa postura. Anarquistas de mercado anti-capitalistas, como já dito antes, vêem o mercado liberto como um local de experimentação social e não de perpetuação do status quo. E esta postura reivindicada por apoiadores do capitalismo-1 não se enquadra nos apoiadores do mercado liberto.
A verdade é que o termo capitalismo já nasceu com tom negativo[1]. No século 19, os teóricos pró-mercado passavam longe desse termo. Sua conotação como sinônimo de liberdade foi um fenômeno adotado por teóricos a partir do século 20.
Vamos fazer um simples exercício de observação: tirando um selecto grupo que defende uma economia livre do qual se denominam “capitalistas”, quem no mundo liga as palavras “liberdade econômica” com capitalismo? Quem, nas universidades, na mídia ou em discussões cotidianas, reconhece a liberdade econômica como sinônimo de capitalismo? Por acaso o filme “Capitalismo, uma história de amor”, de Michael Moore, se referia a uma economia livre?
Se sairmos na rua pra perguntar a alguém o que essa pessoa entende por capitalismo, certamente dará como resposta características do arranjo atual. Em suma, dirá algo entre capitalismo-2 e capitalismo-3, que são os significados originais usados pelos antigos teóricos políticos desde os primórdios.
Parece-me claro que usar o termo capitalismo para querer dizer um sistema de liberdade foi um erro dos mais sérios para aqueles que desejavam propagar a mensagem da liberdade. E isso já mostra o quão infrutífero é se apoiar nele. Mais do que isso, defender um modelo (capitalismo-3) que nasceu através da coerção e do roubo, um modelo do status quo que visa manter estruturas da subserviência como se fosse “um norte para liberdade” soa ainda mais desastroso quanto ao erro anterior. Quem vai querer ouvir falar de uma tal liberdade onde o indivíduo, sobretudo aquele em uma condição desfavorável, permaneça sob o jugo de outro?
A mensagem para uma economia livre deve visar a libertação do indivíduo sobre as estruturas que o mantém preso. A liberdade deve vislumbrar a emancipação e autonomia individual como sendo o senhor dos seus próprios meios de produção. Uma mensagem a ser levada de modo completa e não picada. Deve ser mostrada como uma radical visão de esperança e não moldada sob velhas estruturas. Ser entoada como uma revolução pessoal e não com lampejos conservadores.
Um resumo do que pensa um anarquista de mercado sobre o livre mercado anti-capitalista? Kevin Carson responde: “A Grande Empresa tem sido uma criatura do estado desde o seu início. E mercados livre genuínos operariam como dinamite sob as fundações do poder corporativo.” É por isso que anarquistas de mercado defendem os mercados e não o capitalismo.
Nota:
[1] A primeira aparição da palavra “capitalismo” (capitalisme) como um sistema político-econômico ocorreu na França, em meados do século 19. Foi usado para referir a um tipo de trabalho do qual capitalistas se encontravam, isto é, fazer dinheiro emprestando dinheiro sob interesse, investir em negócios de outras pessoas ou manter a propriedade do capital e contratar trabalho para utilizá-lo. O termo original possui qualquer significância, exceto o de mercados livres de fatores de produção.
Louis Blanc definiu capitalismo como “a apropriação do capital por alguns sob a exclusão de outros” e Proudhon, que era favorável ao livre mercado, definiu como “um regime social e econômico em que o capital, a fonte de renda, geralmente não pertencia para aqueles que empregaram trabalho através da sua própria mão-de-obra”. Dependendo do que se entende por “apropriação” e “exclusão”, Blanc pode se referir a capitalismo-2 ou capitalismo-3. Já Proudhon se referiu ao capitalismo-3.

Rodrigo Viana escreve para os sites Libertarianismo.orgMercado Popular.org e mantém os blogs Libversiva! e A Esquerda Libertária. Siga seu twitter: @VDigo

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