sexta-feira, 30 de maio de 2014

O patriarcado existe e (infelizmente) vai bem

Por Uriel Alexis

Debatendo em redes sociais, xs feministas às vezes se deparam com alegações de que o feminismo já não é mais necessário nas sociedades ocidentais, onde “se atingiu a igualdade entre os sexos”, que quaisquer diferenças que porventura existam são resultado de características inatas de cada um dos sexos e que “por que você não vai criticar o Oriente Médio, lá as mulheres sofrem de verdade!”.
Ignorando, pelo presente momento, a errônea identificação de opressão com sofrimento, nenhuma dessas afirmações têm qualquer base na realidade social. No caso do Brasil, como reportou a Época recentemente, uma recente pesquisa do IPEA, sua publicação do Sistema de Indicadores de Percepção deste ano, fornece evidência estatística daquilo que as feministas vêm dizendo há tempos: há uma estrutura patriarcal da família, há violência sistemática contra a mulher na sociedade e há uma cultura de estupro profundamente arraigada.
Segundo a pesquisa, “58,5% acham que, se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros” e “65% dos brasileiros concordam com a ideia de que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas“, o que demonstra claramente um cultura de minimização da culpabilidade do estuprador, além da culpabilização da vítima. Não há outro nome para isso além de “cultura do estupro”.
A última citação, se tomada junto com o entendimento da lei policêntrica e do direito consuetudinário, pode ser descrita como uma lei não escrita do patriarcado, um “punho invisível” (para usar a frase de Charles Johnson), que mantém as mulheres “em seu devido lugar”: dentro de relacionamentos estáveis com homens, sem autonomia para com seus corpos e à mercê da proteção masculina.
Também testemunhada pela pesquisa, a estrutura familiar culturalmente aceita na sociedade brasileira é “aquela composta por pai, mãe e filhos. E liderada pelo marido: a maioria enxerga o homem como o cabeça da casa“. Essa estrutura patriarcal, caracterizada pelo “o pai [que] continua a ser uma figura cuja autoridade deve ser respeitada, ainda que isso acarrete prejuízos para a mulher“, é responsável por resultados absurdos como os 27% que acreditam que o estupro conjugal é permissível. O que só torna muito mais bizarra a afirmação de que “63% acham que casos de violência doméstica só devem ser discutidos entre membros da própria família“.
Dentro desse contexto de violência sistemática e legitimada contra a mulher, numa sociedade cuja unidade mais básica está estruturada para torná-la submissa, o que pode ser feito?
Normalmente, uma grande parte dxs feministas defende que o estado deve tomar ações no sentido e equacionar as relações de poder entre homens e mulheres. Como um estado gerido majoritariamente por homens, com uma força policial que é a epítome das características delineadas pelo estudo do IPEA, pode ajudar as mulheres é algo bastante obscuro. E as perspectivas de reforma para uma instituição baseada na agressão e na exploração, a fim de acabar com a agressão e a exploração, também não são exatamente promissoras.
Minha proposta é diametralmente oposta: o estado deve sair do caminho. Permitir o porte de armas seria um grande passo na auto-defesa feminina. A desregulamentação da economia, ao aumentar as possibilidades de emprego e empreendedorismo em geral, tende a trazer maiores oportunidades para a independência feminina tanto da instituição do casamento, quanto de culturas corporativas altamente machistas. Assim como a desregulamentação da mídia corporativa tenderia a diminuir a quantidade de propaganda machista, ao colocá-la sob forte concorrência de competidorxs feministas. Numa proposta mais radical, a desestatização e a abertura do mercado de segurança e justiça seriam altamente benéficas contra o machismo enraizado na cultura estatal. Como Roderick Long coloca em seu texto “Além do Patriarcado“:
Em particular, a explosão de prosperidade que uma sociedade libertária veria já seria ir bastante longe em fornecer às mulheres uma rede de segurança econômica muito mais efetiva que qualquer programa de bem-estar do governo. (Uma possibilidade é que as mulheres poderiam formar redes de suporte mútuo do tipo que as regulamentações governamentais atuais tornariam impossível.) (…)
Poderia o fato de que as atuais forças policiais gozam de um monopólio coercitivo na provisão de segurança dentro de seus respectivos territórios ter qualquer coisa a ver com essa situação? Imagine um cenário em que diferentes tipos de agências policiais, especializadas em diferentes tipos de problemas, pudessem competir no livre mercado. Um agência policial feminista (talvez uma rede de suporte mútuo, talvez um negócio que cobrasse uma taxa por serviço prestado, talvez um organização sem fins lucrativos dependente de contribuições de caridade, talvez uma combinação dos anteriores) seria muito provavelmente bem mais sensível e compreensiva a questões de abuso conjugal do que as agências policiais atuais o são. Um agressor da esposa pode ter que lidar com três feministas armadas com Uzis que apareceriam em sua porta para investigar. (Nesse contexto, lembre-se que o controle de armas (que não existiria numa nação livre) é uma das ferramentas mais efetivas do patriarcado, uma vez que favorece aqueles com maior força física; a propriedade e treinamento generalizados de armas de fogo mina a vulnerabilidade feminina à violência masculina compensando as diferenças médias de força entre homens e mulheres.)
Um questão relacionada é a da auto-defesa contra abuso conjugal. Numa série de casos recentes, uma mulher matou ou mutilou seu marido abusivo porque ela temia a continuação do abuso, embora ele não estivesse abusando dela no momento preciso em que ela o atacou. Nosso sistema legal tende a tratar essas mulheres como criminosas, com base em que a auto-defesa violenta só é justificada quando a ameaça é /imediata/ (exceto quando é o governo que está fazendo a defesa, ponto no qual o critério para violência preventiva justificável parece se tornar extremamente frouxo). O argumento é que uma mulher abusada deve fugir do lar em vez de ficar e agredir seu agressor. Mas por que ela deveria deixar /sua própria casa/, simplesmente porque também é a casa do agressor? Mesmo nosso sistema legal degradado geralmente reconhece que uma pessoa não tem obrigação nenhuma de fugir de um agressor quando ela está em sua própria casa. Se você é vítima de um padrão persistente de violações severas de direitos, um padrão que você tem toda a razão de esperar que continue, e se autoridades externas não oferecem proteção confiável, me parece que é justificável que você empreenda sua própria defesa, a que uma corte libertária deveria conhecer isso. Um sistema legal competitivo permitiria às perspectivas das mulheres uma voz maior em decidir o tratamento de tais casos do que é possível sob o nosso sistema monopolista.
Mas o estado não é tudo na sociedade. Mesmo na ausência dele, como a pesquisa mostra, a sociedade civil poderia muito bem continuar a fazer valer a “Lei do Patriarcado”. Contra isso, devemos fazer uso do nosso “empreendedorismo social”: manter um olhar crítico e alerta para atitudes de culpabilização da vítima e para a objetificação da mulher, estabelecer relacionamentos interpessoais e famílias que operem em igualdade, prezar pela autonomia dos indivíduos (mulheres e homens), boicotar empresas e mídia que propaguem mensagens de machismo, enfim, tornar o espaço que temos na sociedade mais igualitário.


Uriel Alexis mantém o blog LiberAção Humana.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Seduzidas e desonradas



Por Maria Lacerda de Moura


Publicado no jornal O Combate, edição 4581- página 3, São Paulo, 15 de Dezembro de 1927.


Multiplicam-se, assombrosamente, as noticias de suicídios diários: moças seduzidas pelos namorados, com promessas de casamento.

Os jornais procuram fugir à responsabilidade, apontada no ruído com que tratam todos os pormenores, publicando cartas e noticiando os incidentes e particularidades das tragédias amorosas.

Mas, a imprensa á, realmente, a que cultiva e incita, a que maior culpa tem no crescendo desses atentados á própria vida.

Os jornais são feitos sob a rigidez perversa da moral burguesa-capitalista e feitos, na sua maioria, pelos homens – bem instalados na vida sob o ponto de vista sexual – e se há mulheres na redação, no jornalismo, pensam e agem também dentro da hipocrisia farisaica dessa moral fossilizada e pesada de crimes.

Pelo código desse moraliteísmo, a mulher virgem que se entrega a um homem, nada mais tem que fazer senão o suicídio, se é abandonada.

Dentro desta moral, a jovem está desonrada, perdida, desgraçada e tem de carregar o peso de todos os atributos que procuram inutilizar para a vida uma criatura humana.

Nunca a perversidade dos seres que se julgam racionais foi mais longe do que na concepção estreita de que a mulher (animal seguindo a evolução pela mesma escala zoológica de todos os animais, com as mesmas necessidades fisiológicas e os mesmos direitos de indivíduos na multiplicação da especie e na liberdade sexual), nunca a maldade humana desceu tão baixo quando decretou que a mulher deve guardar a virgindade para entrega-la ao “esposo”, somente dentro da lei, em certo dia determinado pelos pais, pelo escrivão de paz e pelo padre e diante de testemunhas e convidados os quais ficam sabendo: é naquela noite que se rompe uma película de carne do seu corpo, chamada hímen. A himenolatria dos cristãos civilizados. Profundamente ridículo.

Que de humilhações tem sofrido a mulher através da historia dessa humanidade tão desumana!

E ai daquela que se esquece do protocolo. Se, hoje, não é lapidada, se não é enterrada viva como as vestais, se não é apedrejada até a morte, se não sofre os suplícios do poviléu fanático de outros tempos, inventou-se o suicídio: é obrigada a desertar da vida por si mesma, porque a literatura, a imprensa, toda gente aponta-a com o dedo, vociferando o “desgraçada”, “perdida”, “desonrada”, “desonesta”, abrindo-lhe, no caso contrario, as portas da prostituição barata das calçadas, com todo o seu cortejo de misérias, de sífilis, de bordeis, de humilhações, do hospital e da vala comum.

Miserável moral de coronéis, de covardes e cretinos! E o homem cresce com as suas aventuras, adquire prestígio, famas e glorias até mesmo e principalmente entre o elemento feminino.

É incrível até aonde vai a imbecilidade humana, a perversidade dessa moral cristã, tão divorciada do meigo Nazareno: “quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”.


Dentro da concepção estreita e má dessa moral de escravos e senhores, o mesmo ato praticado por dois indivíduos de sexo diferente tem significações opostas: a mulher se degrada, torna-se imoral, desonesta, desonrada, está desgraçada, perdida irremediavelmente se não encontra um homem para lhe dar o título de “esposa” perante a lei e as convenções sociais, enquanto o homem é o mesmo, talvez tendo adquirido mais valor de estimação perante as próprias mulheres, e sendo invejado pelos outros homens.


Essa moral nada difere de algumas tribos primitivas que os etnógrafos de gabinete estudam curiosidades e admiração, esquecendo-se de que nós, os civilizados, somos mais selvagens e tão primitivos quanto os mais primitivos dentre os selvagens.

O que espanta é a atitude servil da mulher – a imbecilizada secular – a santa mente fechada para perceber a idiotice da moral cristã (em nome de Cristo quantas barbaridades se cometem!) a sua perversidade sempre que julga e condena outra mulher.

Não quer ver o seu direito de animal na escala zoológica, o dever de ser dona do seu próprio corpo e senhora da razão, da liberdade de dirigir e governar os seus impulsos, como lhe aprouver.

A educação, a rotina, a tradição, o confessionário se encarregam do que falta para fechar, num circulo de ferro, o cérebro da mulher, não deixa-lo raciocinar e perceber a tutela milenar que a tem submetida pelos preconceitos e dogmas religiosos – exclusivamente para o prazer bestial do sexo forte, que, por ser forte, é o mais bem aquinhoado na partilha do leão.

Mas, a mulher não se deixa lesar... O casamento é porta aberta para o adultério. E ela mente, engana, atraiçoa. Serve-se da astucia e da Hipocrisia – as únicas armas de que pode dispor.

Porque, os homens vulgares, e são quase todos, preferem ser enganados...
Uma grande parte, porem, inexperiente, as mulheres moças, apaixonadas, emotivas, desiludidas recorrem ao suicídio como porta de salvação para a sua angustia. Esse crime arrebata á vida tantas energias moças. É o resultado da moral farisaica dos cristãos piedosos e caridosos – cujo porta-voz é a imprensa, quer seja governista ou oposicionista, religiosa ou laica.

As pobres mulheres apaixonadas não chegam a raciocinar um instante sequer para compreender, para sentir que o nosso coração tem mais uma primavera, que isso a que chamam de amor pode ser renovado, que amamos mais uma vez na vida, de acordo com o temperamento ou as etapas de evolução, porque, nem todos são eleitos para chegar a realizar o grande amor...

Não perceberam que a nossas idades de ouro, aos 15 anos, os 25, os 30 e os 40 nos ensinam experiências sempre mais belas progressivamente e nos dizem coisas lindas através de ilusões do amor que, em todas as idades tem a sua perfumada estações de sonhos e de esperanças novas. E é belo e profundo saber amortalhar as ilusões...

Desfeita uma visão, outra virá, talvez, mais bela, povoar de imagens a nossa imaginação irrequieta, na escalada de uma evolução mais alta.

E, se uma experiência amorosa nos deixa o travo de amargura, é, por sua vez, degrau para subir os visos de uma ilusão maior.

Não viram que a liberdade sexual do homem é ilimitada, que ele não é considerado perdido, que se não desgraça porque usa e abusa dessa liberdade e que não é natural nem justo uma moral para cada sexo.

E a eterna tutela, o idiota milenar ainda hoje, em pleno século de tanta reivindicações femininas, se esquece da mais importante das suas reivindicações – a de ser dona do seu próprio corpo, a da sua liberdade sexual, a do ser humano com o direito á alegria de viver a vida integralmente, em toda a sua plenitude.

E suicida-se porque foi seduzida, porque a desgraçaram, porque esta perdida.

Santa ingenuidade.

Por que razão por fim á sua vergonha, se isso a que os jornalistas chamam de vergonha é a iniciação em a mais bela das Leis Naturais, o abc da Lei Maxima, a Lei  do Amor, a Lei da integração de dois seres no espasmo da Harmonia Universal?

E é desprezando as Leis Naturais, as Leis não escritas – que os homens, servindo a interesses egoístas, tão pequeninos, escrevem e legislam as suas leis de lamentável perversidade, encurralando o coração humano na jaula de ferro de uma justiça de fogo, matando e sensibilidade das criaturas na aridez de uma moral fria, sem alma, torpe, assassina de milhões de vitimas, sacrificadas no templo de Molóc dos preconceitos sociais.



Maria Lacerda Moura foi professora e ativista libertária. Defensora do anarquismo individualista, seus trabalhos eram centrados em temas como o feminismo, a educação e o anarquismo.

Veja também:





sábado, 17 de maio de 2014

Contrato ou organismo, o que é para nós?


Por Benjamin Tucker

Liberty, 30 de Julho de 1897

Uma discussão muito interessante e valiosa está acontecendo no London Jus no que toca a questão do imposto compulsório versus voluntário. Na edição de 17 de Junho, há um comunicado de F. W. Read, que está na passagem a seguir: 
A proposta da taxação voluntária significa de fato a dissolução do Estado em seus átomos constituintes, e os deixa à vontade para se recombinar ou não de alguma forma, tal como pode ocorrer. Não haveria nada que prevenisse a existência desses cinco ou seis “Estados” na Inglaterra, e membros de todos esses “Estados” poderiam viver na mesma casa! A proposta é, ao que me parece, o resultado de uma idéia nas mentes daqueles que propõe que o Estado é, ou deveria ser, fundado sob contrato, da mesma forma que uma empresa de sociedade anônima é. É uma idéia similar a extinta teoria do “contrato original’. Pensava-se que o Estado deveria se basear num contrato. Nunca houve contrato em épocas históricas; foi assumido então que teria havido um contrato pré-histórico. O defensor do imposto voluntário diz que nunca houve contrato algum: logo o Estado nunca possuiu qualquer base ética; dessa maneira, não faremos um contrato. A explicação de toda a questão, creio eu, foi dada pelo Sr. Wordsworth Donisthorpe,— a saber, que o Estado é um organismo social, evoluído tal como todo outro organismo, e não precisando mais do que outros organismos ser baseado sob um contrato, seja original ou contemporâneo.”
A ideia que a taxação voluntária objeta o Estado precisamente porque este não se baseia sob um contrato, e pretende substituir contratos por ele, é completamente correta, e eu fico feliz de ver (pela primeira vez, se me lembro bem) um oponente compreendê-la. Mas o Sr. Read obscurece seu ponto pela sua afirmação anterior de que a proposta da taxação voluntária é o “resultado de uma idéia... que o Estado é, ou deveria ser, fundado sob um contrato”. Isso seria verdade se as palavras que eu deixei em itálico fossem omitidas. Foi a inserção dessas palavras que forneceram ao escritor as bases para sua analogia, em outras circunstâncias, infundadas entre os Anarquistas e os seguidores de Rousseau. O último afirma que o Estado se originou num contrato, e que as pessoas de hoje em dia, apesar de não tê-lo assinado, estão submetidas a ele. Os Anarquistas, pelo contrário, negam que tal contrato tenha sido feito; declaram que, se tal contrato tivesse sido firmado, não poderia impor um resquício de obrigação àqueles que não o firmaram; e advogam o direito para contratar para eles mesmos como assim quiserem. A posição de que um homem possa fazer seus próprios contratos, longe de ser análoga àquela que o torna sujeito ao contratos feitos por terceiros, é sua própria antítese.

É perfeitamente verdade que o imposto voluntário não necessariamente "preveniria a existência de cinco ou seis 'Estados' na Inglaterra", e que "membros de todos esses 'Estados' pudessem viver na mesma casa". Mas eu não vejo motivo para o ponto de exclamação do Sr. Read após esta afirmação. E daí? Existem mais de cinco ou seis Igrejas na Inglaterra, e acontece frequentemente de membros de diversas delas viverem na mesma casa. Existem muito mais que cinco ou seis seguradoras na Inglaterra, e de forma alguma é incomum vermos membros da mesma família assegurarem suas vidas e bens contra acidentes ou incêndios em empresas diferentes. Há algum mal eminente disto? Por que então, não deveria haver um número considerável de associações de defesa na Inglaterra, nas quais as pessoas, até membros da mesma família, possam assegurar suas vidas e bens contra assassinos ou ladrões? Apesar do Sr. Read ter captado uma das idéias dos defensores da taxação voluntária, eu temo que ele veja outra de maneira muito menos clara,  propriamente a de que a defesa é um serviço, como qualquer outro serviço; que é trabalho tanto útil quanto desejável, e logo então uma mercadoria econômica sujeito a lei da oferta e demanda; que num livre mercado essa mercadoria será provida ao seu custo de produção; que, com a concorrência prevalecendo, o financiamento será dado àqueles que provenham o melhor artigo ao preço mais baixo; que a produção e a venda dessa mercadoria é atualmente monopolizada pelo Estado; que o Estado, como qualquer outro monopolista, cobra preços exorbitantes; que, como qualquer outro monopolista, provêm um artigo praticamente ou totalmente sem qualidade; que, assim como o monopolista de um tipo de alimento fornece veneno ao invés de nutrição, da mesma forma o Estado se aproveita de seu monopólio da defesa para fornecer invasão ao invés de proteção; que, assim como os patronos de um pagam para serem envenenados, da mesma forma os patronos do outro pagam para serem escravizados; e, finalmente, que o Estado supera todos seus outros companheiros de monopólio no que tange sua perversidade porque ele desfruta do privilégio único de obrigar a todos comprarem seu produto queiram ou não. Se, então, cinco ou seis "Estados" iniciassem seus próprios negócios, as pessoas, creio eu, seriam capazes de comprar o melhor tipo de segurança a um preço razoável. E o melhor, - quanto melhores seus serviços, menos necessário eles seriam; de tal forma que a multiplicação dos "Estados" envolve a abolição do Estado.

Todas essas considerações, entretanto, estão dispostos, na opinião do Sr. Read, pela sua afirmativa final de que "o Estado é um organismo social". Ele considera isso "a explicação do assunto completo". Mas quanto a mim eu não vejo nisso nada senão outro comentário irrelevante. Novamente eu pergunto: E daí? Suponha que o Estado seja um organismo - e aí? Qual a inferência? Que o Estado é então permanente? Mas o que é a história senão a dissolução de organismos e o nascimento e crescimento de outros a serem por sua vez dissolvidos? O Estado está imune a esta ordem? Se está, por quê? O que prova isso? O Estado é um organismo? Sim; da mesma forma como um tigre. Mas a menos que eu encontre-o desarmado, seu organismo irá se desorganizar rapidamente. O Estado é um tigre procurando devorar o povo, e ele deve ou matá-lo ou aleijá-lo. Sua própria segurança depende disto. Mas o Sr. Read diz que isso não pode ser feito. "De forma alguma o poder do Estado pode ser restringido". Isso deve ser muito desapontante para o Sr. Donisthorpe e Jus, que estão trabalhando para restringi-lo. Se o Sr. Read estiver correto, sua profissão será extinta. Está ele certo? A menos que ele possa demonstrar, os defensores do imposto voluntário e os Anarquistas continuarão os seus trabalhos, animados com a crença que o Estado compulsório e invasor esteja fadado a morrer.


Traduzido por Rafael Hotz e revisado por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.


Benjamin Tucker foi um anarco-individualista e propagador do Mutualismo nos Estados Unidos. Atuou como tradutor, teórico político e econômico e trabalhou como editor para o jornal anarquista "Liberty".

Veja também:



quinta-feira, 15 de maio de 2014

Hierarquia é o oposto de ordem



Por Jakob Pettersson “Sushigoat”

ordem
1. Uma condição de arranjo lógico ou compreensível entre os elementos separados de um grupo.

...o nível mais alto de ordem na sociedade é expressada pelo nível mais alto de liberdade individual, em uma palavra, pela ANARQUIA.
- P. J Proudhon

Hobbes de forma famosa defendia a hierarquia do estado por alegar que sem ela as pessoas viviam em uma “guerra de todos contra todos”. Embora nós não iremos discutir se isso tem ou não qualquer verdade histórica para tal, nós diremos o oposto: o Estado é uma zona de guerra! Os agressores são os monopólios econômicos, políticos tirânicos e a hegemonia cultural. O inimigo é a humanidade, liberdade, interação social e Ordem!

Uma hierarquia é um sistema de desordem; incompreensível, ilógico e ineficaz. Em todo nível, uma hierarquia cria antagonismo entre os diferentes agentes. Esta forma de organizar incita ódio contra seu colega, porque você também está concorrendo com ele, governando-o ou governado por ele. Então você busca punir, impelir, evitar, mentir e falar mal dele, porque você é forçado a isso. É a única coisa que faz sentido em uma hierarquia! Ser o pior você pode ser ou perder o seu lugar na atividade social, essa é a mensagem verdadeira da hierarquia.

Na hierarquia conhecimento é separado da autoridade, recompensa é separada do esforço e comunicação é obstruída pelo fato de que um agente tem o poder de colocar o outro em posições muito desconfortáveis. Como um resultado, aquele que assume ordens somente irá comunicar essa informação para seus superiores que não colocaria o subordinado em posições desconfortáveis. Isso é entendido, subconscientemente tanto pelo senhor quanto pelo servo, e cria uma aura de desconfiança entre eles. No final do dia, você nunca será capaz de se expressar completamente, eficientemente ou autenticamente, para alguém que tem o poder para te punir, humilhar, privar ou maltratar.

Do caos da hierarquia surge a guerra, violência e nacionalismo. Sem ela, é uma impossibilidade. Aqueles no topo de uma hierarquia tem seres humanos reais às suas disposições, quem pode ser separado completamente da vontade e dignidade individual se os senhores assim desejarem. Os senhores, se eles quiserem, podem e tornam seus capitais humanos em soldados, leais de partido, patriotas, consumistas, lunáticos paranoicos, criminosos, torcedores violentos de esportes, nacionalistas, racistas e assassinos de sangue frio. Obediência é uma doença que impede ordenar; pessoas que não se levantarão pelos seus próprios direitos para serem livres nunca farão sentido ao mundo. Nós apenas chamamos o que nos rodeia de “ordem” porque nós acreditamos nisso desde a juventude; vamos ser honestos conosco mesmo. Isso, esse sistema de hierarquia e submissão que nos rodeia é nada, senão uma Guerra Civil invisível.

“Não vou obedecer” é o coro de ordem, “só irei conformar à vontade de meus colegas se eu partilhar da intenção deles”, é o verso de toda decência humana. A única ordem é aquela ordem que é baseada no acordo mútuo, sem comandar e obedecer. Vamos reverter a noção dos dois monstros de Hobbes, “o estado de natureza” e o “contrato social”: O estado de hierarquia é uma guerra de todos contra todos! Portanto, devemos concordar, através de lei não escrita, a respeitar cada um e gerir nossa conduta nos princípios do acordo e reciprocidade mútua. Declaramos com Anselme Bellegarrigue:

Quem declara a anarquia, declara a negação de governo;
Quem declara a negação de governo, declara a afirmação do povo;
Quem declara a afirmação do povo, declara a liberdade individual;
Quem declara a liberdade individual, declara a soberania de cada um;
Quem declara a soberania de cada um; declara a igualdade;
Quem declara a igualdade; declara a solidariedade ou fraternidade;
Quem declara a fraternidade; declara a ordem social;
Ao contrário:
Quem declara o governo, declara a negação do povo;
Quem declara a negação do povo, declara a afirmação da autoridade política;
Quem declara a afirmação da autoridade política, declara a dependência individual;
Quem declara a dependência individual, declara a supremacia de classe;
Quem declara a supremacia de classe, declara a desigualdade;
Quem declara a desigualdade, declara o antagonismo;
Quem declara o antagonismo, declara a guerra civil;
De onde resulta que quem declara o governo, declara a guerra civil.


Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o original clique aqui.





terça-feira, 13 de maio de 2014

Hierarquia voluntária?



Por Jakob Pettersson “Sushigoat”

Eu tenho sido bastante hostil a respeito aos anarco-capitalistas aqui, mas eu quero tentar deixar claro um conceito errôneo.

Como um ex- então chamado ”voluntarista”, minha barreira para entrar para o anarquismo social [N. T.: anarquismo social remete à linhagem original do anarquismo, do qual que integra o mutualismo, anarco-sindicalismo e anarco-comunismo] era esse conceito errôneo comum entre as pessoas que acreditam em assuntos como o “princípio da não-agressão (PNA)” e o direito à propriedade de que anarquistas sociais são, de alguma forma, anti-contrato voluntário e de que eles puniriam violentamente pessoas por fazerem tais contratos. Esse ponto de vista se sustenta de forma firmemente segura entre pessoas que se denominam “voluntaristas”, “anarco-capitalistas” e “austro-libertários”, e infelizmente compelido pelos fanáticos vulgares de Chomsky, que pensam que haverá algo como “tributação” em uma sociedade sem estado.

Após um tempo fica irritante ouvir vloggeiros, blogueiros e twitteiros libertários direitistas fazerem alegações tal como “eu aceitaria o anarquismo socialista em uma sociedade sem estado se fosse voluntário”. Eles poderiam também terem dito “eu concordo com o socialismo voluntário se fosse voluntário”. Todo anarquismo social visiona uma sociedade sem agressão. E nenhum anarquista social te impediria, de forma violenta, de empregar pessoas por salários baixos e, uma vez que não existe “governo anarquista”, não haveria que te impedir também. Poderia haver protestos, boicotes organizados e outros coisas, tudo feito sem infringir o PNA. “Você permitiria voluntário x em seu sistema?” parece que cabe ao indivíduo anarquista decidir quais contratos voluntários são feitos, coisa que seria, sabe, um governo.

Mas existe um problema na ideologia do voluntarismo, do “tudo é permitido se eu fiz um contrato consentindo isso”, além do simples fato de que algumas pessoas tem uma desvantagem estrutural no mercado em geral. O problema com a “hierarquia voluntária” é que o mero fato de que não existe um agressor forçando você a concordar não torna isso legítimo.

Vamos dizer que exista uma organização cuja principal atividade é propagar a homofobia. Eles regularmente organizam comícios promovendo ódio e intimidação de pessoas gays. Fomentam os pais a disciplinarem seus filhos por serem gay. Rastreiam pessoas gays e os molestam verbalmente. Intimidam gays ao ponto de suicídio. Organizam e financiam suas atividades completamente voluntária, sem coerção. Você não tem que se juntar, financiar ou gostar do que eles estão fazendo. Qualquer um que muda de ideia sobre homossexualidade pode sair. Será que a capacidade em você não assinar o contrato com eles, ou retirar o consentimento das atividades, legitima o que eles estão fazendo?

Você provavelmente diria não. Você provavelmente diria que tal organização deveria ser combatida. Uma vez que você acredita no princípio de não-agressão, você provavelmente diria que a forma de combater seria organizar boicotes em massa, usar a mídia e a educação, persuasão e contra-organização para combater pelo o que é certo.

Isso é, claro, um exemplo extremo. Nós, anarquistas sociais, vemos o ambiente de trabalho como um local onde a hierarquia social do gerente e gerenciado, pagador de salário e assalariado, empregador e empregado é negativo. Nossa crítica sequer se apoia em uma teoria de valor-trabalho, mesmo que muitos de nós acreditam que ela seja verdade (mesmo Kropotkin rejeitava a teoria do valor-trabalho). Isso cria uma situação onde ambos estão trabalhando contra uns com os outros, porque eles tem tanto motivos diferentes quanto geralmente opostos por estar nessa hierarquia. Como empregadores buscam lucros e empregados buscam salários mais altos, se cria uma tensão negativa. Isso é um problema, correto? Ora, uma vez que ambos concordamos sobre a não-agressão: o que nós, não violentamente, estamos indo fazer sobre isso?

O ponto principal é: sua capacidade de interagir voluntariamente com uma estrutura de poder ilegítima não é uma legitimação dessa estrutura de poder ilegítima.

Nós também criticamos o mercado atual, a mercantilização de virtualmente tudo, os valores culturais transmitem, o culto do comércio e a deificação de objetos, o motivo de lucro. Isso é um problema, talvez não para você, mas para nós. O que fazemos sobre isso? Nem diga “bem, não utilize força para regular o mercado” porque isso é irrelevante e nos leva a lugar nenhum. Uma vez que concordamos sobre a não-agressão, qual é a solução? Isso é o que estamos tentando resolver.

Nós discordamos com alguns assuntos que são voluntários. Nós achamos que eles são negativos à sociedade e queremos fomentar os valores que nós sentimos serem importantes para uma sociedade próspera e humana. E talvez nós devemos ser melhores em persuadi-lo sobre isso. Mas isso é o que queremos e o que esperamos que você queira também.

Outra coisa: alguns anarquistas, inclusive, defendem cessar os títulos de propriedades atuais como parte de uma mudança social maior a partir do capitalismo de estado para uma sociedade socialista libertária. Isto não exige “agredir contra sua propriedade”, mas poderia. Antes que você vá chorar em uma esquina, você deveria pensar sobre isso: os títulos de propriedade destas pessoas são coisas que você apoia? Eles conseguiram essa propriedade numa forma que se adequa nas ideias gerais da apropriação lockeana sem condição? Eu, pessoalmente, duvido *profundamente* disso. As chances são, eles as obtém através do privilégio assegurado pelo governo, através da propriedade intelectual, às vezes tão vulgar quanto o domínio eminente ou roubo direto. Lembre-se, isto não é “livre mercado”.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o original clique aqui.


sexta-feira, 9 de maio de 2014

Meu problema com o capitalismo, em poucas palavras



Por George Donnelly

'Capitalismo' é uma palavra engraçada. Significa tantas coisas diferentes para tantas pessoas diferentes que se torna inteiramente inútil como um fundamento de qualquer tipo de comunicação racional ou construtiva. Para alguns, é uma vasilha para idealizar e despejar todos os seus sonhos dentro. Para outros, é uma lata de lixo que pode encher com suas reclamações e as mais cínicas expectativas para o futuro. Mas o que é capitalismo, em sua raiz?

Alguns irão mencionar trabalho assalariado, outros exploração e outros também irão falar de livre comércio. Porém eu acredito que a característica definidora é a habilidade de acumular muitos, muitos e muitos objetos (capital). E então, a mais importante, ter uma terceira facção que proteja sua habilidade para controlar esse algo mesmo que você não esteja usando-a. Essa terceira facção, claro, é o estado (o governo).

(Tem que ser um governo? Não. Contudo, eu não acho que uma organização não-agressiva irá avançar na mesma extensão assim como o estado para proteger a propriedade.)

Sem essa habilidade para acumular e ter seu título de propriedade ao referido objeto protegido por pouco à nenhum custo para si mesmo, assuntos como trabalho assalariado, exploração e comércio controlado não poderiam ocorrer. Isso tudo depende dos desiquilíbrios de poder que se originam do estado em proteger o controle dos capitalistas das propriedades deles.

Eu não acho que o capitalismo sobreviveria sem o estado. Numa sociedade sem estado, as pessoas estariam mais livres para se levantarem contra pessoas que tentam controlar mais propriedade do que eles realmente utilizam. Agindo em acordo, grandes números de pessoas poderiam, no pior caso, adquirir armas, formar uma força de defesa e lutar contra os capitalistas em um nível de mais igualdade. Posseiros, cooperativas de posse de trabalhadores e agentes diretos similares assumiriam o controle em maior quantidade das propriedades dos capitalistas. No decurso, os poderes dos capitalistas seriam corroídos.

Para aqueles que dizem que capitalismo é livre comércio, nada mais e nada menos, isso não é a característica definidora. Livre comércio pode ocorrer sob muitos sistemas ideológicos diferentes. O livre comércio está florescendo agora mesmo na China, no meio de um ostensivo sistema socialista. O livre comércio pode ocorrer em uma sociedade anarquista. Eu não duvido que o livre comércio ocorreu até na União Soviética, onde alguns podem ter permutado vodka por pão (ou o oposto), por exemplo.

Nem exploração é uma característica definidora de capitalismo, uma vez que pode ocorrer em qualquer lugar onde haja um desequilíbrio de poder, incluindo sob regimes socialistas, comunistas, democráticos ou, evidente, totalitários e antigos. Em outras palavras, exploração não é único ao capitalismo.

Então esse é o meu problema com o capitalismo: de que algumas pessoas privilegiadas chegam a acumular toneladas de objetos às custas de outros por usar o governo para protegê-los da ação de mercado. Por ação de mercado eu quero dizer se apropriar de propriedade que os próprios capitalistas não estão utilizando.

Assim, não estou de boa com o capitalismo (não mais). No que estou? Eu simpatizo com a ideia de que as posses das pessoas devam ser respeitadas. Estes são objetos que um indivíduo utiliza em um princípio básico habitual para viver sua vida. Eu incluiria todas as ferramentas e bugigangas que uma pessoa utiliza em sua casa e nos seus negócios, incluindo uma quantidade razoável de terra para viver, para utilizar para recreação e produzir comida; e tudo que se passa com o seu negócio.

Se uma pessoa prospera legitimamente, eu não tenho princípio para contestar qualquer acumulação de riqueza. Mas eu discordo com o controle absentista de objetos, especialmente de recursos naturais. Existe um argumento de que a toda a terra é o patrimônio comum de todas as pessoas. E eu acho isso convincente. Assim, pois uma pessoa negar às outras a utilização sensata deste patrimônio comum não é legítimo.

Por exemplo, se alguém cerca 1000 acres de terra, mas utiliza consistentemente somente 2, eu não considero isso legítimo. Simplesmente ser o primeiro a cercar não é um fundamento sólido para negar esse patrimônio comum aos outros. Se alguém precisasse de terra e tivesse uma intenção sólida em utilizá-la e manter sua vida, eu apoiaria essa pessoa em qualquer tentativa de se apropriar de uma parcela razoável dos 1000 acres.

Um capitalista poderia argumentar que o primeiro cercador misturou seu trabalho com a terra ou que registrou o título de propriedade e então agora isso era “parte dele” (que soa um pouco místico demais para o meu gosto). Porém o primeiro cercador apenas misturou seu trabalho com 2 acres que ele está utilizando e a faixa estreita de terra que está a cerca. E sobre os outros 998 acres? Ele não fez nada lá. Por isso, eu nem mesmo acho que o princípio de apropriação apoia as ações do primeiro cercador.

Mas você não pode viver sem propriedade, dizem os capitalistas. Sim, você pode. Você pode viver com posses, as coisas que você controla e utiliza. Você pode viver a vida totalmente sem aqueles objetos que você não utiliza, mas controla (propriedade). Se você não os utiliza, isso aí mostra que você não precisa deles para viver.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.


George Donnelly é formado em história pela Universidade de Chicago. Atua como palestrante, ativista e escritor, tendo três livros publicados.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Anarquistas unidos jamais serão vencidos



Por Uriel Alexis

A anarquia é realmente uma idéia incrível.

Estive pensando ultimamente sobre como as diversas estratégias anarquistas, essa grande variação do tema “faça valer sua liberdade agora” que encompassa desde a ação direta anarco-sindicalista até o agorismo de Sam Konkin, passando pela propaganda pelo ato e pelo Do It Yourself punk, poderiam se combinar de maneira a tornar a atual sociedade de classes cada vez menos interessante e mais impraticável, eliminando privilégios políticos, econômicos e sociais no processo e fomentando a ajuda mútua entre seres humanos.

Pode parecer um tanto complicado conciliar os objetivos específicos de anarco-sindicalistas, anarco-coletivistas, anarco-comunistas e anarco-individualistas (estes últimos um tanto mais), entre outrxs anarquistas, de maneira que todos os grupos atinjam esses objetivos e ao mesmo tempo colaborem entre si. No entanto, creio eu que devido aos objetivos em comum serem muito mais amplos e numerosos, acho que a solução é bastante simples, pois as instituições que cada escola anarquista desenvolveu são complementares. Vou procurar delinear aqui como os anarquistas podem formar uma coalizão coerente para derrubar o sistema estatista-capitalista atual.

Vou iniciar com as instituições propostas pelo anarquismo individualista na tradição mutualista, visto que são as com que eu tenho maior intimidade. A idéia central do mutualismo é estabelecer o controle do processo produtivo pelos trabalhadores através da dispersão do capital na sociedade. Proudhon defendia que cada indivíduo possuísse um meio de produção, individual ou coletivamente com outros por via de contrato, e Kevin Carson delineou em “Homebrew Industrial Revolution algumas das maneiras como as tecnologias atuais de produção doméstica e materiais de hobby podem ajudar a realizar esse ideal.

Não é difícil imaginar como o atual capitalismo monopolista, cada vez mais burocrático, hierarquizado e centralizado, contando com a intervenção estatal para manter os concorrentes fora do mercado, cria sérios incentivos para que as pessoas busquem cada vez mais maneiras para sair da rotina acachapante da escravidão assalariada. Uma breve investigada no estilo de vida dx habitante médix de uma metrópole qualquer vai demonstrar esses incentivos.

Assim, pode-se imaginar que cada vez mais pessoas vão buscar adquirir algum meio de produção pessoal, no começo presumivelmente anarco-individualistas comprometidxs com a causa, mas depois outrxs sem qualquer filiação ideológica buscando apenas mais independência. Tecnologias como o computador pessoal, impressoras 3D e ferramentas CNC, cada vez mais acessíveis, podem ajudar bastante, mas uma boa e velha horta em qualquer pedaço de terra que se consiga é o suficiente para começar.

Estxs trabalhadrxs independentes vão inicialmente produzir para o mercado em geral, de certo. Mas o mercado em geral está submetido à taxação governamental, uma espoliação de seu trabalho tanto quanto o lucro monopolista, e é do interesse destxs revolucionárixs subverter este estado de coisas. Uma engenhosa contribuição cripto-anarquista recente, as moedas virtuais, pode vir em seu auxílio nesse sentido. Estxs produtorxs independentes podem formar redes de ajuda e comércio mutual trocando seus produtos através de BitCoins (ou qualquer outra moeda, quem saber uma Labor BitNote?), que são desregulamentadas e irregulamentáveis. Contanto que todas as transações sejam feitas dentro da rede e com moedas virtuais, é impossível rastreá-las, regulá-las ou sequer cobrar impostos sobre elas.

Uma tal rede de produtores independentes estabelece ainda um novo incentivo: trazer mais produtorxs para a rede. Quanto mais produtos e serviços puderem ser oferecidos dentro da rede, menos dependente da economia formal xs produtorxs estão. Como fazer isso? Novamente as idéias mutualistas vêm em nosso auxílio: o estabelecimento de um banco mutual, como proposto por Proudhon e William Greene, que empreste capital a juros quase nulos (ou pelo menos infinitamente menores dos que o do atual cartel de bancos o faz) através de moedas virtuais. Um tal banco seria capaz de financiar a aquisição de meios de produção por uma parcela ainda maior de pessoas descontentes com o sistema econômico atual.

Com o aumento da rede de produtorxs, e com as relações de confiança mútua fomentadas pelo banco mutual, processos produtivos cada vez mais complexos podem ser organizados através de cooperativas e projeto p2p, entre outros tipos de colaboração, tornando essa rede cada vez mais independente da economia formal. Conforme essa rede ficar mais forte e resiliente, mais ações poderiam ser tomadas dentro dela, como escolas, auxílios a pessoas em dificuldades, tratamento médico e transporte coletivo.

Okay, até esse ponto eu descrevi um maneira de começar uma economia paralela dentro da economia atual, como defendido pelos mutualistas e agoristas. Vamos agora colocar um pouco de tempero de outras escolas anarquistas nesse feijão.

Anarco-sindicalistas defendem o estabelecimento de uma auto-gestão democrática dxs trabalhadorxs no ambiente de trabalho, a ser atingida através da ação direta e da solidariedade entre a classe trabalhadora. Podemos ver claramente como a rede de produtorxs independentes descrita acima teria um enorme espaço para o estabelecimento de sindicatos e federações descentralizada através de cooperativas. Mas vamos examinar a possibilidade de, através de sindicatos na indústria formal, trazer as atuais corporações ao controle trabalhista da produção.

Seguindo as táticas de ação direta dos Wobblies no seu panfleto clássico “How to Fire Your Boss?, os trabalhadorxs nas mais diversas indústrias podem, através de organizações diretas e descentralizadas, ganhar um enorme poder de barganha frente à administração dessas indústrias. Quanto maior tal poder de barganha, mais próximo do ideal de auto-gestão democrática elxs estão. As constantes rupturas na produtividade dessas indústrias ferirão sistematicamente o lucro do capitalista, e se forem suficientemente imprevisíveis e orquestradas, terão pouco efeito sobre os trabalhadores, mesmo se levando em consideração a provável intervenção estatal em favor do capitalista por meio da polícia.

Uma ação concomitante que pode ocorrer, dada essa ruptura na produção e a consequente diminuição do valor de mercado da empresa, é a gradual tomada, por parte dos trabalhadores individualmente ou como um coletivo, das ações em bolsas de valores das empresas envolvidas. Tal compra de ações conferiria cada vez mais controle sobre o ambiente de produção, e poderia ser financiada através dos bancos mutuais descritos acima.

Uma vez que um certo ambiente de trabalho tenha sido totalmente colocado sobre a auto-gestão direta dos trabalhadorxs, os produtos dele podem ser trocados dentro da rede de produtorxs independentes em bases mutuais. Isto adicionaria grandemente à estabilidade e ao bem-estar de todos dentro da rede, uma vez que uma grande quantidade de pessoas está agora conectada. Vemos agora que tanto mutualistas quanto anarco-sindicalistas podem conseguir muito de seus objetivos específicos, e ao mesmo tempo avançar seus objetivos comuns, trabalhando juntxs contra o capitalismo. Vamos tentar expandir isso para incluir mais algumas escolas anarquistas.

A questão agora passa pela reorganização de espaços geográficos. Dessa maneira, provavelmente as ações destxs anarquistas teriam que começar em locais ocupados no campo ou na cidade a fim de estabelecer commons, ou então da reunião voluntária de diversos trabalhadorxs que produzissem ou residissem nessas áreas.

O anarco-coletivismo, fortemente conectado com as idéias de Mikhail Bakunin, defende uma forma de organização social muito parecida com uma sociedade organizada em volta dos sindicatos descritos acima. Uma vez que esses sindicatos adotassem um política de pagamento de salários (mais propriamente falando, uma divisão da produção) baseada na quantidade de trabalho executado por cada um de seus membros, possivelmente através das Labour BitNotes aceitas em toda a rede de produtorxs independentes, seria um pulo para se organizar comunas anarco-coletivistas. Imagino que tais comunas seriam sociedade descentralizadas, localizadas nos entornos das indústrias sindicalizadas, com as devidas organizações sociais sendo todas de cunho coletivo. Diversas destas comunas, também conectadas à rede de produtorxs independentes, poderiam se coordenar entre si e com estes produtores para fornecer a seus membros produtos e serviços que não estivessem disponíveis localmente.

Uma outra possível organização destas comunas seria em torno dos princípios do anarco-comunismo, cujo principal teórico, Piotr Kropotkin, defendia o fim dos salários e uma divisão dos produtos do trabalho de acordo com as necessidades individuais em vez da quantidade de trabalho (uma ótima descrição de uma tal sociedade é o livro “The Dispossed de Ursula LeGuin). Para isso, bastaria que os sindicatos abolissem os pagamentos e a utilização de qualquer moeda, e que fossem criados sistemas de distribuição comunais.

No sentido econômico, as comunidades anarco-comunistas estariam fora da rede de produtorxs independentes, visto que não haveriam trocas sequer em moedas virtuais. Mas certamente elas estariam conectadas por meio de laços de confiança e auxílio mútuo. Por exemplo, a rede poderia fornecer produtos e serviços gratuitamente através daqueles membros que assim o desejassem.

Outros modelos de integração das diversas comunidades e instituições anarquistas até aqui descritas podem ser pensados para harmonizar com os interesses específicos de anarquistas verdes, anarco-naturistas e quem sabe até anarco-primitivistas!

Em conclusão, eu gostaria de incluir um último pensamento, de um liberal clássico com seríssimas tendências anarquistas, Gustave de Molinari. Conforme essa intricada rede de produtorxs e comunidades independentes fosse simultaneamente sendo desenvolvida através das ações diretas dxs anarquistas, cada vez mais ela estaria na mira do estado capitalista e de suas forças armadas. O século XX nos mostrou do que essas instituições são capazes ao promover o horror e a violência. Não é difícil de imaginar que essa rede revolucionária precisaria de proteção.

Molinari propôs, ainda no século XIX, que os serviços de proteção e de resolução de conflitos fossem fornecidos por (!) produtorxs independetes, e não por uma instituição monopolista como o estado. Certamente nossa rede de produtorxs independentes poderia conter pessoas interessadas em prestar esses serviços. Também, diversos tipos de organizações descentralizadas e comunitárias de proteção e resolução de conflitos poderiam surgir nas comunas anarco-coletivistas e anarco-comunistas, a fim de protegê-las dos perigos mortais do estado, e poderiam  colaborar com os produtorxs independentes da rede.

Enfim, meu ponto central aqui foi que unidos, em uma coalizão coerente, xs anarquistas de cada escola podem, através de ações concretas derivadas de suas próprias tradições, avançar tanto suas causas comuns de derrubada do capitalismo e do estatismo, quanto suas causa específicas, no mais genuíno espírito de ajuda mútua!

Já estou preparando meu projeto de comunidade auto-sustentável, e minerando algumas bitcoins, espero colaborar com todxs vocês!

NO MASTERS, NO GODS!



Uriel Alexis mantém o blog LiberAção Humana.

Veja também: