sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O anarquismo e voto



Publicado originalmente no Jornal Causa do Povo nº56 set/2010.

O boicote às eleições burguesas pode ter diferentes significados, conjunturais e teóricos. É importante marcar aqui tal diferença do ponto de vista do anarquismo revolucionário. 

Podemos dizer que tal tática começa a ser delineada no século XIX. Em uma resposta de Proudhon aos Operários do Senna (que o consultaram sobres candidaturas operárias), Proudhon fala que a constituição de tais candidaturas era um processo legítimo e expressava a capacidade política operária. Para ele tais candidaturas não deviam ser o foco da ação operária, mas sim sua organização econômica.

Bakunin reforçaria tal perspectiva, enfatizando o boicote como recusa a teoria estatista (da reforma e da revolução). A revolução e a ação dos trabalhadores não passariam pela luta pela conquista do Estado, seja através das eleições, seja através da violência. A estratégia era aprofundar as lutas econômicas e políticas e organização dos trabalhadores, combinando a greve com as lutas insurrecionais que desembocariam na destruição do Estado. Assim, a tática do boicote às eleições burguesas aparece no anarquismo como reflexão critica da participação dos operários nas repúblicas burguesas (especialmente 1848) e como concepção de revolução anti-estatista.

Tal tática tem outro significado nos partidos reformistas e mesmo nos partidos revolucionários. No caso dos Partidos reformistas, a tática do boicote expressa no máximo uma incapacidade conjuntural. A ausência de força eleitoral leva ao boicote. No caso dos partidos revolucionários, tal tática é subordinada à conquista do Estado pela violência. Tanto a participação eleitoral quanto o boicote não implica numa critica do Estado.

No caso dos Partidos reformistas é importante dizer que eles constantemente evoluem no sentido de deixarem de ser partidos de organização de massa (que organizam os trabalhadores para lutas econômicas e políticas de massa, intensificando assim a luta de classes, como o fizeram por exemplo, durante certo período a social-democracia alemã e o partido socialista chileno) para serem partidos eleitorais de massa (que tentam apenas se organizar em termos de Estado, relegando a segundo plano as lutas e desarticulando as organizações de trabalhadores que só tem função no sistema eleitoral).

Essa é a situação dos partidos políticos no Brasil (PT, PCdoB, e também PSOL, e em certa medida PSTU). Os Partidos Eleitorais de Massa não intensificam a luta de classes. Nessa situação, os partidos reformistas não somente cumprem um papel evidentemente contra-revolucionário na situação revolucionária. Eles são fatores que impedem que a luta de classes se desenvolva ao ponto de constituir uma situação revolucionária. E num contexto como esse a tática do boicote eleitoral, tal como vislumbrada pelo anarquismo revolucionário, é a ainda mais importante. Elas implicam na oposição de diferentes políticas para a organização dos trabalhadores: ou estas são subordinadas à política burguesa ou lutam contra essa subordinação.

A tática do boicote eleitoral retoma e vincula o aspecto negativo (o boicote às eleições como recusa do Estado) com o aspecto positivo (afirmação da capacidade política operária e a teoria/práxis da revolução social, com a centralidade das greves e insurreição). Assim, ela tem um aspecto educativo/ideológico: a negação do substituísmo da ação de classe pela do partido eleitoral de massas (com suas conseqüências desorganizadoras); e aspectos político-organizativos, já que combate a desorganização induzida pelas estruturas derivadas dos "Partidos Eleitorais de Massa" que pulverizam e reduzem as lutas dos trabalhadores ao mínimo e as subordinam às eleições e estrutura do Estado.

A tática do boicote às eleições burguesas assim se vincula à luta ideológica e política concreta. Não é apenas propaganda ou denuncia (como no caso dos reformistas libertários, que não têm estratégia contra a hegemonia reformista), ou escolhas derivadas da própria conjuntura eleitoral (como os partidos oportunistas da oposição).

O boicote é assim uma arma ideológica e organizativa. Por isso a palavra de ordem Não Vote: Lute! é a única palavra de ordem revolucionária no atual momento histórico ante às eleições. E ela se liga a uma estratégia de luta e organização de massas e só assim se diferencia do reformismo e oportunismo.

Ou se vota com os de cima ou se luta com os de baixo


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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Mutualismo: 7 razões para o otimismo



Por Victor L.

O mutualismo ainda é bastante minoritário, porém há motivos para pensar que isso pode deixar de ser assim antes do que venhamos a pensar. O predomínio da ideologia dominante tem rachaduras grandes e podemos tirar vantagens se soubermos bem quais são nossos pontos fortes. Aqui vão 7 motivos para ser otimista:

  1. O mutualismo tem uma resposta sólida para 4 das questões que mais preocupam as pessoas hoje em dia: o desemprego, a desigualdade, a corrupção política e o poder das empresas multinacionais. Mesmo que, em princípio, não temos soluções (por exemplo, os despejos), podemos criá-los para este fim, sem contradizer nossa força de ideias.

  2. Estamos livres das inimizades históricas e simbólicas que muitas vezes obstruem o debate político fundamentado. Não somos comunistas e nem conservadores, nacionalistas centrais e nem regionais. Em vez disso, a princípio, PODEMOS ter algumas pessoas próximas do mutualismo.

  3. Em relação ao ponto anterior, criticar com a mesma rigorosidade os EUA e a Venezuela demonstra credibilidade e, ao mesmo tempo, produz a sensação autêntica de que nossas ideias são novas. Quando essa crítica combina elementos tão diversos como Mises, Chomsky ou Orwell, a percepção do mutualismo é imbatível. As pessoas se sentem mais confortáveis com ideias que, em vez de fugir da luta, tomam o melhor de diferentes tendências sem abandonar sua essência.

  4. O mutualismo se defende bem frente a especialistas de qualquer ciência social. Enquanto os comunistas são cautelosos frente aos economistas, podemos nos gabar de sermos sólidos em economia e combativos com o capitalismo ao mesmo tempo. Em outras palavras, temos superado um complexo histórico da esquerda.

  5. Entre os estudantes, o mutualismo proporciona uma alternativa educacional brutalmente radical e plausível em tempos. Ken Robinson (educação) e Kevin Carson (negócios), no fundo, falam da mesma ideia em âmbitos diferentes. Todas as pessoas que já passaram pelo sistema público de ensino é um mutualista em potencial.

  6. Conservadorismo, comunismo e liberalismo vulgar exigem sacrifícios especiais; o mutualismo não. Quando não se precisa construir um “novo homem”, as pessoas percebem que não tem por que abandonar sua individualidade e se sentem mais confortáveis com as tuas ideias.

  7. Por último, os mutualistas medianos sabem mais sobre as demais ideologias do que estes sabem sobre nós. É natural: temos que nos esforçarmos mais para testar nossas ideias com as ideias dominantes, enquanto as pessoas comuns ainda ignoram que exista algo chamado mutualismo. Isso nos dá uma vantagem esmagadora em qualquer debate.
Minha impressão pessoal é que quando as pessoas da esquerda não doutrinária se submetem aos argumentos do mutualismo durante certo tempo e sobre vários temas, terminam próximas de nossas ideias. Mas para isso devemos nos apresentar como somos, independente de qualquer outra ideologia e sem complexos.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o original em espanhol clique aqui.


quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Um pouco da história do feminismo libertário…



Publicado originalmente no blog Gritos Libertários

Muitas das anarquistas não se consideravam feministas por acreditarem que esse termo designava as mulheres que lutavam pelo voto. Porém elas são consideradas feministas por suas preocupações com a emancipação das mulheres, que tem profunda relação com as ideias libertárias do anarquismo, já que este busca a emancipação humana. Desse modo o anarquismo engloba o feminismo, porém os termos “anarcofeminismo” ou “feminismo libertário” passaram a ser usados para dar mais destaque ao campo de atuação que se trata.

Feminismo libertário no Brasil
Maria Lacerda de Moura

O feminismo anarquista tem destaque no Brasil do começo do século XX. Nessa época muitas mulheres atuaram politicamente, em greves pelo aumento de salário, redução da jornada de trabalho, respeito no trato a elas e às crianças e em solidariedade a seus companheiros. Vale lembrar que nessa época, diferentemente de hoje em dia, trabalhadores de diferentes categorias frequentemente entravam em greve em solidariedade a uma outra categoria. Assim, por exemplo, quando os ferroviários paravam, os padeiros, sapateiros e outros também paravam. Foi por esse tipo de organização que a Greve Geral de 1917 foi possível no Brasil.

Uma das militantes brasileiras de mais destaque da época foi Maria Lacerda de Moura. Ela foi professora, conferencista, jornalista, poetisa e escreveu vários livros que tinham como objetivo passar ideias sobre emancipação humana, questionando o papel da escola e da educação, da religião, do Estado, o fascismo, o militarismo e falando sobre controle da natalidade. Ajudou a fundar a “Federação Internacional Feminina” e o “Comitê Feminino Contra a Guerra”, nos anos 20, que tinham como objetivo articular as mulheres de São Paulo e Santos para além da luta pelo voto, articulada por outras feministas da época.

No caso da Federação Internacional Feminina alguns pontos de discussão eram: “assistência, sistemas coercitivos, trabalhos domésticos e trabalho industrial, seduções, jogo, infância delinquente, investigação à paternidade, júri, direitos civis e políticos da mulher, tráfico de mulheres, coeducação, casamento, (…) divórcio, salário, os crimes da maternidade fora da lei, eugenia, proteção aos animais etc”.

As feministas liberais da época criticavam as anarquistas por considerá-las muito radicais, e as últimas criticavam as primeiras alegando que sua luta era pouco transformadora, limitada à esfera pública burguesa e preservadora das relações hierarquizadas na esfera privada. Um exemplo disso é essa crítica feita por Isabel Cerruti, no jornal “A Plebe” em 1920:

A 'Revista Feminina' em seu programa propõe-se a propugnar pela emancipação da mulher conseguindo para ela o direito de empenhar-se em lutas eleitorais. (…) Como se a emancipação da mulher se resumisse em tão pouco…
O programa anarquista é mais vasto neste terreno; é vastíssimo: quer fazer compreender à mulher na sua inteira concepção, o papel grandioso que ela deve desempenhar, como factora histórica, para a sua inteira integralização na vida social (…).

Outras militantes conhecidas são Maria Valverde e Sônia Oitica (filha do militante anarquista José Oiticica), que por volta dos anos 30 e 40 atuaram no teatro libertário e eram ligadas aos Centros de Cultura Social, de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se discutia temas como moral sexual e sexualidade.

Uma crítica feita pelas feministas anarquistas é que os partidos políticos de esquerda da época diluíam a causa das mulheres na causa do partido, pois estes alegavam que elas deveriam se empenhar na luta pela revolução através do partido, relegando a causa feminista à questão da opressão de classe e criticando os espaços específicos das mulheres, ou seja, não reconhecendo uma opressão específica às mulheres, mas alegando que todos os que não são os detentores dos meios de produção são oprimidos pelo capitalismo (como se isso se desse da mesma forma para todos). Assim, para as anarquistas, a divisão das mulheres em partidos enfraqueceu a luta pela emancipação da mulher.

Feminismo libertário em outros países
Emma Goldman em Londres, 1924

Nos Estados Unidos a figura de Emma Goldman se destaca. A militante nasceu em 1869 na Lituânia, mas se mudou para os EUA em 1885 (com 15 anos), fugindo de um casamento arranjado por seu pai. Lá teve contato com as greves pela jornada de 8 horas de trabalho, o que resultou nas mortes de muitos manifestantes – situação que ficou conhecida como caso dos “Mártires de Chicago”.

Sua militância tratava de temas como o controle de natalidade e o amor livre, militarismo e patriotismo como ameaças à liberdade. Apesar do início da sua militância ter tido mais contato com a ideologia de Bakunin, que utilizava a violência como meio para a revolução, no decorrer de sua vida e principalmente após se encontrar com Kropotkin Emma passou a ter ideias humanitaristas. Ela escrevia a revista “Mother Earth” e teve inúmeros relacionamentos, muitos deles com homens bem mais jovens, causando escândalo para a sociedade da época.

Em 1917 em uma manifestação contra o alistamento para a Primeira Guerra Mundial Emma foi presa acusada de conspiração. Ela foi deportada para a Rússia e conheceu Lênin, que havia executado e encarcerado anarquistas e outros dissidentes, além deste último alegar que a liberdade de expressão era um conceito burguês (liberdade esta tão valorizada por Goldman). Isso fez com que a anarquista escrevesse o livro “Minha desilusão com a Rússia”. A partir de então ela mora em vários países diferentes, morrendo no Canadá em 1940. Suas cinzas foram para o Waldheim Cemetery, ao lado dos mártires de Chicago.

Militantes do grupo Mujeres Libres

No caso da Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), havia a milícia das Mujeres Libres, que atuavam ao lado da CNT-FAI (Confereración Nacional del Trabajo e Federación Anarquista Ibérica). O grupo foi fundado por Apolonia de Castro, Felisa de Castro, Maruja Boadas, María Cerdán, Nicolasa Gutiérrez, Soledad Estorach, Elodia Pou, Conchita Liaño, dentre outras. Durante a guerra o aborto foi legalizado na Catalunha, o grupo atuou pela educação das mulheres por uma maternidade consciente e propunha que elas fossem agentes da revolução para a construção de uma nova sociedade.

Havia a revista “Mujeres Libres”, editada e escrita exclusivamente por mulheres e que se dirigia a mulheres da classe trabalhadora com a intenção de atraí-las para a causa libertária. Falavam de causas como o anticlericalismo (alegando que a religião usava as mulheres como guardiãs da ordem social e moral tradicional), prostituição, o direito ao prazer sexual e o amor livre, alegando que a monogamia se relacionava estreitamente ao capitalismo e à propriedade privada.

O grupo propunha uma solução coletiva para a emancipação feminina, conscientização e educação. Assim, na Espanha predominou um feminismo que não buscava direitos políticos, mas que fazia reivindicações trabalhistas e educativas, vendo essa luta com uma perspectiva de classe e relacionada ao anarcossindicalismo. A cultura e a educação eram vistas como fundamentais à emancipação humana.

Referências:

Edgar Rodrigues, “Mulheres e Anarquia”. Editora Achiamé.
Emma Goldman, “O indivíduo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios”. Editora Hedra.
Margareth Rago, “Anarquismo e feminismo no Brasil / A audácia de sonhar”. Editora Achiamé.
Maria Lacerda de Moura, “Serviço obrigatório para mulher? Recuso-me! Denuncio! – e outros escritos…”. Editora Opúsculo Libertário.
Artigo “Amando de olhos abertos” sobre Emma Goldman.
Artigo sobre as “Mujeres Libres”.
Filme “Libertárias”.
Grupo “Mujeres Creando”, da Bolívia



Grito Libertário é um blog com temas sobre anarcafeminismo, veganismo e assuntos do cotidiano sob esta perspectiva.

Veja também:

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Como um ultraliberal se tornou um libertário socialista




Este texto foi escrito nos anos 90 e é bem conhecido na internet anglófona.

Por Chris Wilson

Há dois anos atrás quando eu estava estudando rumo a minha graduação em filosofia na faculdade, eu escrevi uma réplica sobre a seção do The Anarchist FAQ que cobre o anarco-capitalismo. Eu removi a réplica da internet porque eu não tive tempo ou disposição para continuar a manter ou expandi-la. Três anos depois, eu me vi discordando com as minhas antigas réplicas e concordando com o FAQ. O que segue é minha história.

Eu iniciei o meu posto como um ultraliberal de direita lendo Ayn Rand, que me dissuadiu das simpatias bastantes confusas da esquerda que eu mantinha na época. No entanto, eu era só um entusiasta da Rand por um curto período de tempo e eu logo desenvolvi um interesse nos pensadores de livre mercado “mais sensatos”, tais como von Mises, Nozick, Hayek, David Friedman, etc. Eu era um ferrenho adepto do capitalismo sem entraves e “apátrida” em torno de quase 3 anos, e desenvolvi e/ ou adotei toda justificação filosófica e econômica que possa ser concebida pela sua defesa. Entretanto, antes de eu ter me formado na faculdade eu lancei fora minha crença de que alguém pode reivindicar direitos de propriedade privada sobre a terra. Eu defendia uma teoria de trabalho da propriedade e, considerando que a terra não é um bem produzido, descobri que isso não era defensável de acordo com os princípios que eu defendia. Conclui que aquele que acumula terra está colocando uma restrição sobre a liberdade de outros de usá-la ou para movimentar-se de forma sem justificação e, portanto, o requerente deve compensá-los por pagar um imposto único sobre a terra para ganhar direitos exclusivos a ela.

Apesar das minhas novas visões georgistas socialistas da terra, eu ainda defendia um sistema econômico capitalista no que diz respeito aos bens produzidos. No entanto, eu me tornei muito mais crítico em relação às corporações e eu fiquei chateado com os outros ultraliberais pela falta de foco deles sobre as injustiças perpetradas pelas corporações. Eu desejava abolir cartéis corporativos, subsídios, propriedade intelectual, privilégios regulatórios, concessões de terras, etc. como eu os considerava violações da liberdade. Se você pressionar um ultraliberal sobre os privilégios que as corporações recebem, eles geralmente dizem “Ah, bem eu sou contra eles”, contudo eles quase nunca tomam a iniciativa em dirigir qualquer crítica contra elas. Mais frequente do que parece, eles louvam as “virtudes” alegadas das corporações, ao passo que focam sobre como o governo viola esses “direitos” das corporações.

Em primeiro lugar, quando eu me tornei um anarco-capitalista eu achava que abusos corporativos poderiam ser evitados em um domínio econômico em que as corporações não desfrutassem de tantos privilégios regulatórios. Inicialmente eu liguei todas as empresas “ponto com” e “comércio eletrônico” – eu considerava a indústria da internet a ser aquela em que os princípios do livre mercado fossem respeitados, ao contrário de tantas outras indústrias. Entretanto, no ano passado eu vi todas essas empresas se tornarem tão cruéis quanto qualquer multinacional. Eu pensava que todas as empresas “ponto com” eram pequenas como um resultado do funcionamento da indústria de acordo com princípios genuínos de livre mercado, mas na verdade elas eram pequenas *apenas de início*. A maioria delas já não são mais pequenas. Além disso, as empresas mais prósperas estão hoje buscando se beneficiar do privilégio estatal, que é evidente em muitas ações judiciais de propriedade intelectual que estão atualmente pendentes na indústria do comércio eletrônico.

Quando eu estava descobrindo isso (e me tornando um usuário Linux radical no processo), eu estava trabalhando como representante de serviço ao cliente em uma grande e bem conhecida corporação que produz programas de computador (não é a Microsoft). O ato de trabalhar ao invés de ir para a escola, deu-me um novo respeito por movimentos trabalhistas organizados. Adicionalmente, isso me gerou uma simpatia na medida que as corporações ferravam seus clientes. Como eu gastei os próximos seis meses trabalhando para essa produtora de programas bugados, eu cheguei à conclusão de que o meu emprego como representante de “serviço ao cliente” envolvia um pouco mais do que desenvolver racionalizações inteligentes para defender essas atividades fraudulentas da empresa. A maioria dos outros representantes adquiriu as racionalizações da empresa – a maioria dos empregados, incluindo supervisores, acreditavam sinceramente que a empresa fornecia serviço “de nível internacional” aos clientes, o que não poderia estar mais longe da verdade. Sinto vergonha de dizer que eu adquiri *algumas* das propagandas como um resultado de buscar formas de apaziguar a ira dos clientes. E por causa da posição em que nós estávamos – isto é, constantemente ouvindo gritos e sendo criticados pelas políticas que fogem dos nossos controles – era impossível se abster de ficar extremamente ressentido a repeito das tristezas legítimas dos consumidores. Por fim, a empresa adotou algumas novas políticas desagradáveis que eram tão obviamente indefensáveis que eu tive que terminar com o meu relacionamento com a empresa no geral. Fiquei completamente desiludido com a cultura corporativa.

Embora eu fosse a favor de mercados livres, eu era assim porque eu os considerava necessários pelos princípios que eu mantinha. Princípios sempre vieram em *primeiro lugar* para mim – não a economia. No entanto, na época em que eu parei de trabalhar na corporação de programas, finalmente, a ficha caiu de verdade de que as empresas não poderiam *se importar menos* sobre os princípios. As perguntas “Isso é correto?” ou “Isso é justo?” sequer entram nas mentes dos tomadores de decisão de empresas capitalistas – tais perguntas são irrelevantes na vista deles. Embora eu fosse um ultraliberal na época, eu mantinha minhas visões porque eu acreditava realmente que elas seguiam, de forma lógica, o meu amado princípio de auto-governo. Apesar de que eu sabia que *muitas* empresas capitalistas eram completamente desprovidas de princípios, em minha ignorância eu acreditava que isso era só verdade em grandes corporações ajudadas pelo governo. Foi muito desanimador aprender ao longo do tempo que este fato se aplicava para a *maioria* das empresas, independente se elas eram ou não corporações que lucravam a partir de favores estatais. Se elas realmente não recebem favores vindos do estado, então elas tipicamente almejam recebê-los.

Uma semana depois eu saí da empresa de programas de computador, tive sorte e consegui um emprego fornecendo suporte técnico no Fornecedor de Acesso à Internet (ISP) local. Eu pensei comigo mesmo que essa empresa, sendo uma empresa local, seria fundamentalmente diferente. Embora eu realmente prefira trabalhar para o ISP em vez de trabalhar para a mega gigante de programas, rapidamente se tornou óbvio para mim que as motivações e os princípios (ou a falta deles) do presidente e dos maiores acionistas do ISP não são diferentes dos de quaisquer grandes empresas. Embora o ISP seja relativamente pequeno hoje, ele não pretende permanecer por muito tempo. Eu vou dizer que a expansão de um ISP normalmente não favorece os empregados, uma vez que nos obriga a assumir responsabilidades pelos problemas dos clientes que estamos em posição de corrigir (assim como era bem comum com a empresa de programas). Além disso, aqueles que comandam a empresa ainda pensam nos empregados como um custo a ser minimizado. A regra é contratar o mínimo possível, pagar-lhes a menor quantia possível e fazê-los trabalhar mais vezes possível. Desde que iniciei na empresa, eu tenho assumido muito mais responsabilidades do que apenas o suporte técnico, porém meu salário não tem aumentado. Apesar da natureza técnica do meu emprego, os trabalhadores da mercearia próxima ganham mais do que eu, visto que eles são sindicalizados e eu não.

Minha experiência no mundo do trabalho me obrigou a reconsiderar seriamente minha defesa do capitalismo, sob qualquer forma. Como eu estava muito comprometido com os princípios ultraliberais, eu comecei a estudar os “anarquistas socialistas” (eu coloquei “socialistas anarquistas” em aspas, embora hoje eu considero tal termo uma redundância – anarquistas são necessariamente socialistas). Eu me obriguei a considerar o desacordo fundamental que separa Bakunin, Kropotkin, e Malatesta de Rand, von Mises e Friedman. Minha resposta para mim mesmo: os defensores do capitalismo crêem que alguém pode ceder por escrito ou vender a liberdade de alguém, enquanto que os anarquistas não. Como um ultraliberal capitalista, eu era da opinião de que se podia entrar em um acordo moralmente obrigatório ao que se sacrifica a liberdade de alguém em troca de um salário. Minha posição era de que um trabalhador estaria cometendo fraude contra o empregador se ele tentasse reter direitos ao produto completo do seu trabalho. Meu argumento era de que se um empregador possui uma reivindicação prévia “legítima” sobre o capital sendo usado, então ele tem o direito de ditar seus termos de uso. O trabalhador não tem o direito a qualquer coisa além do que o capitalista concordar em dar, assim como o capitalista não tem o direito de tomar qualquer coisa além do que o trabalhador concordar em dar (claro, eu não percebi em meus tempos de “anarco-capitalista” que os capitalistas quase sempre exigem mais do que o trabalhador inicialmente concorda em dar).

Minha posição atual é aquela em que uma pessoa não pode ser obrigada eticamente a algo por acordos que restringem a liberdade dela em se auto-governar. Esse sempre foi o meu ponto de vista de que não se pode ser obrigado, por um acordo, a ser um escravo. Embora uma pessoa possa aceitar um contrato que determina ela a se servir como um escravo, ela pode ser considerada livre para finalizar esse contrato a qualquer momento. No entanto, eu não vinha aplicando este princípio para todas as formas de dominação – eu apenas aplicava para a escravidão de pessoas como se fossem bens em tempo integral, e não para o trabalho assalariado, para a tirania doméstica, etc. Quando eu estava resolvendo minhas questões a respeito deste assunto, decidi simplificar minha decisão ao sujeitar-me a uma experiência de pensamento: João é um indivíduo com nenhum acesso ao capital, ao qual o exclui de ser um trabalhador autônomo. Ele deve encontrar alguém que irá compartilhar o acesso ao capital, se ele quiser continuar a comer. Felizmente Antônio tem bastante capital e está interessado em compartilhar – sob certas condições, claro. Antônio diz a João que ele pode usar o capital de Antônio para produzir, *desde que* João se empenhe em 90% da produtividade enquanto Antônio se empenhe em 10%. Ademais, João irá receber apenas 10% da receita além de seu trabalho duro, enquanto Antônio fica com 90% para a sua própria gula. João concorda com essas condições porque ele não tem outra opção. Moralmente, João é obrigado por meio do próprio acordo a permitir que Antônio mantenha 8, das 9 partes do que João produz? O capitalista, claro, responde “Sim” e, num certo tempo, eu teria dado a mesma resposta, muito embora eu sabia intuitivamente que tal arranjo seria grandemente injusto. Minha resposta atual é “Não”  essa relação entre Antônio e João é inerentemente exploratória, e João tem direito a algo muito melhor.

Isso completou minha conversão ao anarquismo verdadeiro, quer dizer, o *socialismo libertário*. O processo evolucionário foi lento – tudo não aconteceu em uma noite. Eu continuei a me considerar um anarquista individualista por algum tempo, e me mantive mais atraído pelas ideias de Tucker e Proudhon que quaisquer dos anarquistas sociais. Mas quanto mais eu lia Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Rocker, e estudava a Guerra Civil Espanhola e a Revolução Russa, eu concluía que o anarquismo social era uma melhor alternativa. Diferente das variedades individualistas e mutualistas do anarquismo, o anarco-comunismo não fornece um caminho para o capitalismo se restabelecer e isso teve um sucesso revolucionário parcial no passado histórico de países como a Espanha e Ucrânia. O que inicialmente me mantinha longe do anarquismo social era o fato de que muitos dos seus defensores não salientam a perspectiva do que é geralmente chamado de “tirania da maioria”, que eu penso ser uma preocupação válida. Isso não pode ser suficientemente enfatizado que, sob o anarquismo, ninguém seria forçado a se juntar a uma comuna ou a uma federação. Se alguém deseja ser livre para trabalhar independentemente de um coletivo democrático, essa liberdade seria reconhecida e respeitada, desde que ele não tente acumular mais recursos do que se usa ou empregar pessoas por um salário. Concedido isso, os anarquistas não iriam *proibir* o trabalho assalariado, mas “acordos” em que trabalhadores cedem por escrito a liberdade deles não iriam se fazer cumprir.

Uma vez fazendo a transição do libertarianismo de direita para o de esquerda, eu tenho descoberto que o facciosismo e o sectarismo é tão difundido aqui quanto era lá, se não mais. A tecnologia é um bom exemplo de um assunto que divide o movimento anarquista. Por um lado, existe os ludistas anarco-primitivistas que se afastam de todas as formas de tecnologia complexa e que desejam retornar para uma sociedade de caçadores-coletores. E por outro lado, existe os anarquistas que reconhecem que a tecnologia pode ser benéfica se o seu desenvolvimento for dirigido pelos próprios trabalhadores, de uma maneira que seja responsável às comunidades que ela afeta. Eu fico em algum lugar no meio, entre as duas posições – eu não tenho nenhum desejo de retornar para uma sociedade de caçadores/ coletores, mas também preferiria não depender de tecnologia que requeira uma divisão de trabalho tão extrema em que a produtividade se torna uma atividade alienada e sem sentido. Trabalhando na indústria de computadores, eu também entendo que quando a complexidade tecnológica transcende nossa habilidade de entendê-la, isso se torna uma instância da máquina estar no controle de nós, e não o contrário. Se a tecnologia é uma forma de libertação ou dominação, isso é um tópico debatido de forma calorosa pelos anarquistas. Contudo, eles concordam, em oposição aos “libertários” de direita, que uma sociedade em que as circunstâncias criadas pelos humanos forcem as pessoas a “fazerem acordos” para sujeitar as próprias vontades aos de um patrão, isso de nenhuma maneira é algo “livre”.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.

Veja também:

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Um homem de esquerda livre



Por Maria da Paz Trefaut para o site Valor. Entrevista publicada em 5 de Outubro de 2012.

Será que, desta vez, ele retorna ao Brasil? A dúvida alimenta a conversa de quem conhece o filósofo francês Michel Onfray e já foi surpreendido por suas desistências de última hora. Foram várias. A mais recente ocorreu há três anos, quando ele viria falar em Porto Alegre, São Paulo e no Rio. Ao Valor Onfray confirma que estará, sim, na capital paulista, na quarta-feira, para participar do seminário Fronteiras do Pensamento

Será sua segunda vez no país e o encontro promete, já que ele vai falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu livro mais polêmico: "Le Crépuscule d'un Idole, l'Affabulation Freudienne" (O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista por aqui. Lançado em 2010, o trabalho é um violento ataque à psicanálise e ficou meses na lista dos mais vendidos, rendendo muita falação. A crítica mais notória partiu da filósofa Elisabeth Roudinesco, que acusou a obra de "populista, abjeta e delirante" e seu autor de "guru que escreve demais e sem refletir".

Conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo e Santa Catarina, o filósofo francês Michel Onfray veio ao Brasil para falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu livro mais polêmico: Le Crépuscule d'un Idole, l'Affabulation Freudienne (O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista por aqui. Lançado em 2010, o trabalho é uma crítica radical à psicanálise e ficou meses na lista dos mais vendidos. Confira, abaixo, a entrevista de Onfray à revista Valor Econômico.

Professor secundário durante anos, Onfray deixou o ensino público há uma década para fundar, ao lado de 20 amigos, a Universidade Popular de Caen, na região francesa da Normandia. Suas aulas, abertas e gratuitas, são depois veiculadas pela rádio France Culture e podem ser acompanhadas também pela internet. "Larguei meu trabalho de funcionário público porque tinha livros a escrever, conferências a fazer e queria tornar a filosofia popular, como nos incitou a fazer Diderot [1713-1784]", afirma.

Aos 53 anos, com cerca de 60 livros publicados, Onfray faz parte do grupo de filósofos franceses mais midiáticos, conhecidos por popularizar a filosofia e traduzidos em vários países. No Brasil, sua obra vem sendo lançada pela editora WMF Martins Fontes - o mais recente é Os Ultras das Luzes - Contra-História da Filosofia 4. Se os bate-bocas e críticas o acompanham por toda parte, ele também faz questão de responder com a mesma virulência: "Sinceramente, estou me lixando para o que os intelectuais pensam do meu trabalho".

Valor: Seus livros falam de uma temática contemporânea, que contempla da alimentação à estética. O senhor já escreveu sobre bioética, arte, política, história da filosofia e erotismo. Na sua opinião, quais são os temas mais inquietantes para as pessoas nos dias de hoje?

Michel Onfray: Tudo se resume a uma coisa só: como viver no mundo sem ter uma bússola? Deus está morto, Marx também. O capitalismo se comporta muito bem, o niilismo triunfa e a maioria das pessoas busca uma ética e uma política de substituição. Depois de 1989 e a queda do Muro de Berlim, eu proponho alternativas: o hedonismo em matéria de moral e o anarquismo em termos políticos.

Valor: Qual é a melhor maneira de definir o senhor politicamente?

Onfray: Sou um socialista libertário, um leitor apaixonado de Proudhon, o defensor de uma esquerda libertária, como Camus. Detesto Marx e os marxistas. No século XX, o software marxista, repercutido via Sartre, Althusser, Zizek, Badiou, continuou fascinado pelo terror de 1793, por Robespierre e sua guilhotina, por Saint-Just, sedento de sangue, a pretexto da "virtude". Eles aí encontram desculpas para o Gulag [arquipélago Gulag, conjunto de campos de trabalho forçado na Sibéria, durante a ex-União Soviética] argumentando que os Estados Unidos são um país de alguma forma totalitário. Detesto tanto o liberalismo e a direita quanto essa esquerda que se protege à sombra dos miradores. Minha esquerda é libertária. Ela se alimenta de anarco-sindicalismo, de anarquismo municipal, de pós-anarquismo. Se você quer me definir, sou um homem de esquerda livre. Ou um homem livre, de esquerda.

Valor: Com frequência seus textos falam sobre sua vida, sobre a pobreza e a miséria afetiva da infância. Isso ainda o incomoda? Como tudo isso determinou seu trabalho?

Onfray: Nietzsche revolucionou a filosofia ao escrever que ela não era nada mais do que a autobiografia, a confissão de seu autor. A filosofia institucional passa, evidentemente, essa verdade sob silêncio e persiste a declamar que o filósofo é um cérebro sem corpo, que alimenta um comércio desinteressado com ideias puras! Eu, de minha parte, mostro como a ideia genial de Nietzsche é uma verdade epistemológica, tomando como exemplo o que conheço melhor: minha vida.

Valor: Mas a filosofia pode curar ou apenas ajuda a suportar a angústia?

Onfray: As duas coisas. Tudo depende da filosofia. Há filosofias diversas e múltiplas. Assim como há filósofos do conhecimento, da descrição pura, da estética etc. Alguns pensadores ajudam a viver, a bem viver, a melhor viver. Depois de 60 livros eu tento inscrever meu trabalho nessa linhagem. Não podemos viver de acordo com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, ou o Ser e Tempo, de Heidegger. Mas podemos viver conforme as Cartas a Lucilius, de Sêneca, os Ensaios, de Montaigne, ou Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche.

Valor: Um dos mais conhecidos neurocientistas brasileiros, Miguel Nicolelis, diz que atualmente a humanidade é dominada por três esquizofrênicos que ouviam vozes: Jesus Cristo, Maomé e Abraão. O que pensa a esse respeito?

Onfray: 
Não conheço o trabalho desse homem valioso, mas peço ao céu (que é vazio de deuses...) para que ele fale francês (é uma pena que eu não fale sua bela língua). Assim eu poderia convidá-lo para me acompanhar ao restaurante, onde festejaremos essa comunhão de espírito.


Valor: O senhor fundou a Universidade Popular de Caen para dar aulas abertas a todos e, depois, a Universidade Popular do Gosto, em Argentan. No que ela consiste e que resultados obteve?

Onfray: Eu propus celebrar os cinco sentidos num lugar que é um "jardim" de reinserção social. Sob uma tenda, organizo jornadas consagradas a escritores, filósofos e nós celebramos com conferências, concertos, demonstrações culinárias e refeições festivas. Os cinco sentidos são mobilizados para construir uma conexão social hedonista. A última sessão consagrada a Camus [tema do mais recente livro de Onfray: A ordem libertária - a vida filosófica de Albert Camus], juntou 600 pessoas e nós servimos 400 refeições em Argentan, cidade onde nasci, onde moro e onde organizo as jornadas.

Valor: Como analisa a moda da gastronomia que corre o mundo nos últimos anos? Será mesmo possível democratizá-la?

Onfray: Existe, provavelmente, uma moda que ilustra o triunfo do narcisismo contemporâneo. Ela parte da suposição de que nós podemos nos dar prazer, celebrar nosso corpo e que conseguimos nos bastar a nós mesmos. Mas a gastronomia pode também ser popular, celebrar o convívio, ser festiva, alegre e compartilhada. Não consigo imaginar a gastronomia como uma ocasião de nos separarmos uns dos outros num exercício narcísico e ególatra - vejo-a como um momento de festa generalizada. A mesa é uma metáfora política: diz-me o que comes e eu te direi quem és... Charles Fourier, um socialista utópico do século XIX, é um modelo para mim.

Valor: Por que o senhor construiu sua carreira fora de Paris?

Onfray:
 Paris é o lugar de todos os compromissos, de todos os poderes, e, portanto, o lugar de todas as infâmias. Os "Onfray" são descendentes dos vikings que chegaram à Normandia em meados do século X. Meus ancestrais estão nessa região da França há um milênio. Eu nasci, vivi, escrevi meus livros e serei enterrado em Argentan. Não há nada em Paris que me faça participar de seus bacanais de paixões tristes.


Valor: Como avalia a crise europeia? Que futuro espera o continente?

Onfray: A Europa morreu desde que os burocratas assim tentaram, depois da Segunda Guerra. Já a Primeira Guerra a tinha sangrado em vão. A Europa nasceu com a conversão do imperador Constantino ao cristianismo, no começo do século IV. E começou seu declínio quando Luis XVI foi decapitado, durante o Terror de 1793. Ela decaiu mais ainda, depois. Já perdeu seu lugar no concerto das civilizações planetárias e está sendo chamada a integrar o cemitério de civilizações defuntas... O barco segue seu curso, tomemos champanhe, mas sabendo que ele vai a pique. A vocês, o futuro!

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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Qual é a diferença entre libertarismo e anarquismo?



Por Tom Wetzel

Isso depende de qual dos dois significados de “libertário” você tem em mente. No sentido original de “libertário” do século 19 e início do 20, que ainda é predominante em vários países que não falam inglês, não existe qualquer diferença realmente nos termos de qual segmento de opinião política que estes termos se referem. Neste sentido original de “libertário”, a diferença está entre uma definição positiva e negativa. “Anarquismo” possui uma definição negativa: oposição a hierarquias construídas de cima para baixo de poder (“patrões”, “governantes”) tais como as corporações e o estado. “Libertário” se refere a um ponto de vista que coloca grande ênfase na liberdade positiva: controlar sua vida, controlar decisões na medida em que você é afetado por elas, auto-gestão sobre o trabalho e a comunidade, e acesso aos meios para desenvolver seu potencial e, portanto, sua capacidade pela auto-gestão.

O outro significado de “libertário” (N. do T.: ultra-liberais) foi inventado nos EUA no período das décadas de 1950 e 60. Ele foi designado para ser um novo nome para os defensores do liberalismo clássico individualista extremo do século 19. O que é fundamental para esta forma de “libertarismo” é limitar a definição de “liberdade” para liberdade negativa: ausência de coerção ou restrição. Portanto, você pode ver a definição entre os dois “libertarismos” em como eles enxergam a instituição do trabalho assalariado sob o capitalismo.

Para os libertários de esquerda, os anarquistas, ser compelido a trabalhar para empregadores, estar sujeito ao poder gerencial, é uma forma de opressão porque esmaga, invalida a sua auto-gestão e impede a realização do potencial dos trabalhadores assalariados que estão presos em empregos sem futuro.

Para os ultra-liberais, ser compelido a trabalhar para empregadores, ser comandados por patrões é coerente com a liberdade porque ninguém coloca uma arma em sua cabeça para pegar o emprego. E, por isso, não é coerção. A partir da perspectiva anarquista ou libertária de esquerda, isso é uma definição drasticamente pobre de “liberdade”.

Os anarquista não rejeitam necessariamente o “governo”. Como Kropotkin apontou, existe uma distinção entre estado e governo. O governo consiste das instituições de governança... criar regras, julgar disputas, auto-defesa social. Por outro lado, um estado é um aparato burocrático construído de cima para baixo com ordenação sobre forças militares e policiais, separado do controle real pela massa da população.

Ultra-liberais estão certos quanto a existência do estado, porque um estado é necessário para proteger a minoria capitalista ou a classe patronal. Seus desentendimentos com os liberais sociais e social-democratas sobre o estado são sobre o uso do estado fornecer sistemas de benefício social para beneficiar as massas de pessoas comuns... seguro-desemprego, leis de salário mínimo, sistemas de seguridade social, saúde pública, etc. Ultra-liberais se opõem a estas coisas.

Libertários de esquerda defendem sistemas de fornecimento de benefícios sociais tais como assistência médica gratuita, educação, ou transporte público, porém eles desejam que estes serviços sejam gerenciados diretamente pelos seus trabalhadores. Todavia, libertários de esquerda, anarquistas, se opõem ao estado por causa do seu outro lado, a sua utilização para defender e proteger os interesses das classes dominantes e exploradoras, tais como capitalistas e burocratas.

Portanto, os libertários de esquerda propõem substituir o estado com sistemas de poder popular direto baseado na democracia direta das assembléias nos locais de trabalho e bairros, e organismos delegados intimamente controlados pela assembléia de base. Deste modo, nós poderíamos dizer que eles desejam governança sem o estado.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.


Tom Wetzel é escritor e ativista libertário socialista e membro do “Workers Solidarity Alliance”.

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